segunda-feira, 29 de abril de 2024
Prevenção ao abuso sexual e estupro de menores necessita envolver participação da escola

Vanessa Martins de Souza

Jornalista responsável dos jornais do Grupo Paraná Comunicação (A Gazeta Cidade de Pinhais, A Gazeta Região Metropolitana, Agenda Local e Jardim das Américas Notícias)

Prevenção ao abuso sexual e estupro de menores necessita envolver participação da escola

Nos últimos dias, muito tem se debatido sobre o caso da menina de dez anos de idade, do Espírito Santo, que recebeu autorização da justiça para fazer um aborto aos seis meses de gravidez, em razão de ter sido abusada e estuprada pelo próprio tio desde os seis anos. Houve de tudo e mais um pouco. A ativista bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara “Winter”, por exemplo, foi quem disparou a polêmica, ao divulgar o nome da menina e outros detalhes do caso, levando um grupo de militantes anti-aborto a protestar em frente ao hospital. Uma postura das mais antiéticas, indignas e desrespeitosas já vistas em casos semelhantes, onde a privacidade da menina, seus sentimentos e necessidades foram absolutamente negligenciados e desvalorizados. Os militantes “pró-vida”, a julgar pela postura agressiva e arbitrária, demonstraram estarem muito mais preocupados com a defesa de preceitos religiosos e de posições político-ideológicas que com vidas, seja a do feto ou, muito menos, a da menina.

Ativismo arbitrário e absolutista

A postura criminosa da ativista e de seus seguidores precisa ser punida com rigor, para que a parte da população brasileira que apoiou esse descabido ato de militância entenda que ainda somos uma nação razoavelmente civilizada, com princípios democráticos, que segue os fundamentos do Estado de Direito e de um Estado laico. Bem como compreenda que é preciso sempre pautar-se pela ética e respeito às pessoas acima de qualquer ideal ou defesa de ideologias. Afinal, o aborto em caso de estupro é previsto em lei no país, bem como fundamentos de natureza religiosa não podem pautar decisões de um Estado laico. Naturalmente, toda a situação da menina, sofrida desde os quatro anos de idade culminando numa gravidez indesejada que se prolongou até os seis meses sem que, ela própria, a gestante, percebesse essa condição, é das mais degradantes e tristes. Ninguém em sã consciência desejaria um desfecho como esse para o caso. Porém, não se tratava de buscar condições ideais, mas, sim, de minimizar danos, uma vez que o aborto foi realizado com o consentimento da gestante.

“Educadora” demitida

Porém, mais horrenda que a postura da ativista e seu séquito radical , amparado em conceitos absolutistas de “defesa da vida acima de tudo em qualquer situação”, foi a postura de uma professora da rede estadual de ensino do estado de São Paulo. Essa “educadora” foi capaz de comentar nas redes sociais que a menina deveria estar sendo paga pelo tio para não ter contado nada à mãe, entre outros impropérios, comentados de uma forma tão displicente e inconsequente como se estivesse fuxicando sobre o último capítulo da novela das nove. Não deu outra. Após viralizar nas redes sociais, a professora foi demitida pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.

Também causou polêmica a declaração do Presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Dom Walmor Azevedo, que classificou o aborto como um crime “hediondo” e também escreveu: “Lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida, decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses, cuja mãe é uma menina de dez anos”, disse. Walmor considerou a violência sexual como “terrível”, mas reafirmou que a interrupção da gravidez não se justifica “diante de todos os recursos existentes e colocados à disposição para garantir a vida das duas crianças”. Ainda na mensagem, pediu orações a todos os envolvidos no caso. “O precioso dom da vida precisa ser, incondicionalmente, respeitado e defendido”, disse.

Estupro: crime hediondo

Contudo, de acordo com o artigo 128 do Código Penal, a menina tinha direito ao aborto legal, no qual a prática não consiste em “crime hediondo” na Lei nº 8.072, que dispõe sobre esses casos em específico. Crime hediondo, mesmo, foi o cometido pelo suspeito, tio da menina. De acordo com a lei, o suspeito cometeu estupro de vulnerável, que consiste na prática de “atos libidinosos” com menores de 14 anos e é considerado crime hediondo na Lei nº 8.072. Sua reclusão pode variar de oito a 15 anos, a depender da gravidade do crime.

Guerra ideológica

Enfim, em nenhum momento viu-se defensores “pró-vida” demonstrarem alguma preocupação ou indignação com os abusos sexuais sofridos pela menina durante quatro anos. O caso somente ganhou repercussão e a boca do povo quando falou-se em interrupção da gravidez. E é esse tipo de minimização dos fatos e circunstâncias que culminaram no aborto que se revela extremamente preocupante. A impressão é a de que, para tantos “pró-vida”, o estupro, mesmo envolvendo uma menor de idade, uma criança, não é algo tão grave quanto um aborto. Desconfio que a defesa de grupos ativistas como o de Sara Giromini ou mesmo os de esquerda que também compareceram ao hospital para defender o aborto, não é uma defesa genuína pelo benefício das partes envolvidas. Mas, unicamente, outra forma de fazer política e dar substância a disputa ideológica entre dois polos antagônicos, onde vidas humanas, a privacidade das pessoas e suas necessidades e sentimentos não são respeitados.

Papel da escola na prevenção

Tudo parte de mais um capítulo da guerra de narrativas entre dois lados da mesma moeda, esquecendo-se que muitas e muitas meninas em igual situação no país enfrentam o mesmo sofrimento. O abuso sexual, o estupro de menores e os consequentes abortos ou gravidez indesejadas em crianças e adolescentes é uma constante no país, enquanto a sociedade tem fechado os olhos para essa realidade. Seria muito mais digno e humano se o debate tivesse se desenrolado em torno de como prevenir novas tragédias como essa, a começar pela orientação ao menor na família e na escola. Acredito que a escola tem um papel fundamental na prevenção, uma vez que muitas famílias se recusam a comentar sobre esses assuntos com suas crianças. A escola precisa estar a postos, munida de todas as armas pedagógicas e educacionais possíveis para orientar meninas e também meninos (estes últimos também sofrem abuso sexual e estupro) sobre como reconhecerem e se defenderem de situações de abuso sexual, que costumam começar de modo paulatino até culminarem (ou não) no estupro. Educadores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais têm um grande desafio pela frente, inclusive, na contribuição para a implementação de uma política pública de combate a esse grande mal em nossa sociedade, contra o qual a escola deve se posicionar de forma ativa e efetiva.

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