Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação /// Twitter@GaudTorquato

O fim do anonimato

A sociedade de massas está chegando ao seu fim, sob o rolo compressor das mudanças que ocorrem em todos os campos da vida humana. Mesmo se descobrindo, aqui e ali, casos de trabalho escravo, que lembram a era dos feudos, dos impérios e das colônias, com a opressão sobre seres humanos, os nossos tempos são marcados por defesa de direitos, maior autonomia individual e coletiva, aspiração de felicidade. O tacão dos colonizadores é substituído pela chama libertária. E a tendência é a de consolidação de uma comunidade política, onde os anônimos na multidão assumam suas identidades, sob a égide da igualdade.

Os franceses designam esse fenômeno como “autogestão técnica”, com a qual os cidadãos passam a pautar suas vidas de acordo com o lema “sei o que quero e conheço os meios para chegar lá.” Portanto, aquele velho chavão do “Maria vai com as outras”, com seu viés discriminatório, é enterrado para dar lugar à era da expressão individual e grupal. É evidente que esse atributo da comunidade política é identificado no seio dos sistemas democráticos, não nos túneis escuros de ditaduras opressoras.

Para se chegar a este estágio, a sociedade planetária navegou por mares turbulentos. Padeceu sob a ferocidade de duas guerras mundiais, vivenciou morticínios realizados por governantes sanguinolentos, passou pelos longos corredores das endemias e pandemias, como esta que hoje assola a humanidade, experimentou uma infinidade de tipos de governos, até encontrar, aos trancos e barrancos, o sistema que impregna as nações mais desenvolvidas, a democracia. E esta, como se sabe, também atravessa uma crise crônica, a partir dos eixos corroídos que a sustentam, como os partidos, as bases, os parlamentos e seus componentes, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, etc.

O cerne da questão reside nos ideários que, ao longo dos tempos, têm impregnado as sociedades, como o liberalismo, o comunismo, o socialismo, e os afluentes que abriram, como a social-democracia, o neoliberalismo, o social-liberalismo e afins. O fato é que, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, viu-se a aceleração do fenômeno da desideologização e a emergência do pragmatismo nas fronteiras da política. O arrefecimento ideológico deflagrou a queda da primeira pedra do dominó, responsável pela derrubada das outras pedras do jogo: partidos amalgamados, representantes desacreditados, bases desmotivadas.

Nesse ponto, voltamos ao início da reflexão. A saturação de velhas fórmulas entupiu os pulmões do convívio social. Forte indignação – mistura de descrédito, ódio, grito preso na garganta, expansão de demandas nos serviços públicos – acendeu o pavio dos novos grupamentos, que, por sua vez, fincaram estacas por todos os lados.

Explico. Sem confiança na política e em seus agentes, os eleitores passaram a enxergar representantes com olhos de desprezo e cobrança por quebra de compromisso. “Candidatos? Ah, só aparecem de quatro em quatro anos”.
Criou-se imenso deserto entre os políticos e as bases. O vazio passou a ser ocupado por novos centros de poder, um conglomerado de entidades com raízes em categorias profissionais, gêneros, raça e etnias. As minorias passaram a se mostrar e a exibir poder de gritar sua indignação. Sindicatos, federações e confederações, grupos, núcleos e movimentos formam esse mural que, agora, reivindica voz e vez para se posicionar na política. No Brasil, há cerca de um milhão de organizações não governamentais, que fazem pressão de lá para cá, das margens para o centro. Constituem as bases e as colunas da democracia participativa.

Essa é a nova realidade na política contemporânea. Se cada pessoa passa a ser identificada nas ruas por câmeras poderosas e invisíveis, é sinal que se chega ao final da era do anonimato. A política dependerá cada vez mais de cidadãos que não admitem ser apenas números. Ou, parafraseando John Stuart Mill, que Bobbio cita em Considerações sobre governo representativo: “há cidadãos ativos e passivos. Os governantes preferem os segundos, mas a democracia necessita dos primeiros. Se prevalecessem os segundos, os governantes acabariam por transformar seus súditos em um bando de ovelhas dedicadas tão somente a pastar o capim e a não reclamar nem mesmo quando o capim for escasso”.

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