sexta-feira, 20 de setembro de 2024
“Estética da favela” beneficia, apenas, a quem não vive nas “comunidades”

João Aloysio Correa Ramos

Diretor dos jornais do Grupo Paraná Comunicação: A Gazeta Cidade de Pinhais, A Gazeta Região Metropolitana, Agenda Local e Jardim das Américas Notícias

“Estética da favela” beneficia, apenas, a quem não vive nas “comunidades”

Tenho observado, já há muito tempo, o quanto a mídia televisiva tem glamourizado a vida na favela, ou como se costuma chamar em termos politicamente corretos, nas “comunidades”. Quando refiro-me a glamourização, digo no sentido de a mídia tentar transmitir uma imagem de que os moradores das favelas estão satisfeitos em “serem da favela” e que esse tipo de moradia tem, até, seu charme. Recentemente, por ocasião do Dia da Favela, comemorado no dia 4 de novembro, assisti a uma reportagem da Rede Globo, no jornal da manhã, em que o tema era o orgulho que moradores têm de morarem nas comunidades dos morros cariocas.

Na minha percepção, a ideia por detrás da reportagem pareceu transmitir uma noção de conformismo aos moradores, como se eles tivessem que se contentar em morar lá, afinal, não seria tão ruim assim. Como se fosse bacana, até, ser “da comunidade” e seus moradores não tivessem de ambicionar mudar de local de moradia. Enfim, a mensagem mais subliminar transmitida não se restringiu a, apenas, dizer que não é preciso ter vergonha de morar na favela, mas, sim, é preciso ter orgulho.

“Glamourização da pobreza”

Esta constatação de que há uma indústria de “glamourização da pobreza” já é bastante antiga no país. O cinema nacional também contribuiu muito para isso, fazendo a defesa de uma “estética da periferia”. Além dos tradicionais políticos que fazem dos habitantes das comunidades seus currais eleitorais, tendo em vista a perpetuação da miséria através de migalhas concedidas a esse eleitorado de quatro em quatro anos, há toda uma “indústria da miséria” tentando vender a mensagem de que “miséria é bacana” e de que “investir na favela é a solução”.

Culto à “estética da favela”

Trata-se de uma ideologia, verdadeiramente, o que está sendo disseminado a partir do culto à “estética da favela”. Turistas estrangeiros, europeus “descolados” de classe média, geralmente, adoram passar uns dias hospedados nas favelas dos morros cariocas, como se a pobreza e as habitações pitorescas nas comunidades do Rio fossem atraentes pelo exotismo e um certo espírito de “aventura” que é necessário cultivar ao buscar esse tipo de atração turística, até, mesmo, pelos riscos à integridade física do visitante que eventuais trocas de tiros possam acarretar. Pois, essa é a imagem vendida no exterior sobre nossas favelas.

“Vítimas do Estado e da sociedade”

Mas, os grandes ideólogos da “glamourização” das favelas, certamente, são artistas e intelectuais como, sociólogos, fotógrafos, historiadores, escritores e dirigentes de institutos e ongs que se sustentam, literalmente, às custas da disseminação da ideia de que o pobre da favela é uma vítima do Estado e da sociedade e que as favelas só precisam ser “pacificadas”, “reurbanizadas” e outros termos que eles tanto gostam. Trabalham incessantemente em torno da divulgação da ideia de que o morador de favela não sonha em, um dia, sair de lá e buscar um lugar melhor para morar.

É certo que a maioria imensa de moradores das comunidades é gente honesta e trabalhadora. Contudo, daí a pregar a ideia de que basta “pacificar” e “reurbanizar” as favelas para eles ficarem contentes com o que têm, é algo que me parece bastante medíocre e hipócrita. Pois, eu poderia apostar que, se não todos, a maioria dos moradores das comunidades, ao menos, sonha, um dia, poder deixar a favela e morar em um bairro de melhor nível social, com melhores condições de infraestrutura. Em suma, creio que é natural no ser humano buscar evoluir, melhorar, progredir materialmente, também. Acredito que incentivar um falso conformismo em morar na favela, como se houvesse algum charme ou estilo em “ser da comunidade” não passa de política e ideologia com o intuito de se faturar de alguma forma em cima da pobreza. São políticos, artistas globais, intelectuais, dirigentes de ongs, cantores, fotógrafos, todos beneficiando-se, de uma forma ou outra, com a “estética da favela”.

Investimentos em educação e qualificação profissional

Mas, penso que a realidade é outra para quem vive nas comunidades, a quem sente na pele, no dia-a-dia, o que é morar em uma “comunidade”. Buscar acabar com o preconceito contra moradores de comunidades deveria ir muito além de estimular o conformismo com o nível social em que eles se encontram. Mas, incentivar a ascensão social por meio da promoção do amplo acesso à educação, o que não tem nada a ver com oficinas de capoeira e coisas do tipo, mas, sim, com uma verdadeira qualificação que possibilite uma boa colocação no mercado de trabalho.

Quem gosta de miséria é intelectual

Entretanto, esses esforços só seriam possíveis se realmente houvesse gente interessada no apoio aos moradores das comunidades. Ao invés de buscarem rentabilidade e notoriedade em torno da temática “comunidades” como manifestação cultural e artística para entreter certos nichos de classe média de gente “metida a intelectual”. Por falar em intelectual, gosto muito da famosa citação do saudoso carnavalesco Joãozinho Trinta: “pobre gosta é de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. Pois, é. Acredito nessa assertiva do carnavalesco, que conhecia de perto a vida nas favelas e sua gente. Muito mais que artistas e intelectuais que olham a comunidade como uma forma de se promoverem expondo os problemas e dificuldades de pessoas com quem nada têm em comum .

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4 respostas

  1. Boa tarde.
    Li esse texto e gostaria de deixar meu comentário positivo a respeito. Poucos têm a coragem de falar sobre esse assunto sob esse ponto de vista. Parabéns pelas palavras.

  2. Finalmente alguém que pensa como eu!
    Sempre discordei dessa filosofia “água-com-açúcar” de tratar favela no Rio como ponto turístico em vez de típico fenômeno social. (Como se também não houvesse favela em Paris, Londres ou Nova York. )
    O mais triste é que toda essa patota dá a entender que é “uma honra” para os moradores receber turistas estrangeiros de braços abertos, os quais fazem questão de registrar em suas máquinas fotográficas e celulares o “diferente”, o “exótico” ou “pitoresco”, e talvez sentir um certo “gosto de aventura” ,ao constatar que o lugar tem “dono” (no caso, o chefão), conforme o que o amigo descreveu.
    Esses moradores não fazem a menor ideia de que, na verdade, estão sendo encarados pelos “visitantes” como índios dando boas-vindas aos conquistadores ou, pior ainda, como animais de zoológico. Lamentável.

  3. Parabéns pela matéria.
    Infelizmente matérias com esse grau de lucidez não dão mídia.
    O que a maioria ae acostumou a ouvir é que o errado está certo porque o certo é opressor e o errado é vítima.

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