segunda-feira, 20 de maio de 2024
Combate à fome deve ser prioridade e não apenas justificativa para excessos nos gastos públicos

Vanessa Martins de Souza

Jornalista responsável dos jornais do Grupo Paraná Comunicação (A Gazeta Cidade de Pinhais, A Gazeta Região Metropolitana, Agenda Local e Jardim das Américas Notícias)

Combate à fome deve ser prioridade e não apenas justificativa para excessos nos gastos públicos

A discussão do momento, entre a direita e a esquerda, é sobre a quantidade de pessoas que estariam passando fome no país. A direita diz que a esquerda infla números, que não seriam 33,1 milhões de brasileiros (15% da população) que estariam passando fome. Já a esquerda denuncia uma espécie de “negacionismo” da fome entre os bolsonaristas.

A esquerda baseia-se na pesquisa realizada pelo Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, da Rede Penssan – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. As entrevistas foram feitas pelo Instituto Vox Populi em 577 municípios, de 26 estados mais o Distrito Federal, entre novembro de 2021 e abril de 2022, em parceria com o IBGE. Foram 12.745 domicílios entrevistados. De acordo com a pesquisa, 125,2 milhões de brasileiros sofrem algum grau de insegurança alimentar, ou seja, 58,7% da população. Isso representa seis em cada dez brasileiros. Ressalte-se que insegurança alimentar envolve não necessariamente a fome, mas algum nível de redução na qualidade e quantidade da alimentação diária de toda a família, podendo ser classificada como leve, moderada ou grave (os 33,1 milhões que passam fome).

Banco Mundial

Já os conservadores têm amparado-se em recente relatório divulgado pelo Banco Mundial que informou, em 26 de outubro, que a extrema pobreza no Brasil caiu ao menor patamar da série histórica de medição, iniciada em 1980. Pessoas abaixo da linha de pobreza eram 5,4% da população em 2019, o que correspondia a 11,4 milhões de brasileiros. No ano seguinte, 2020, esse índice teria caído para 1,9%. O que aponta para uma redução significativa no número de pessoas em extrema pobreza nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro. Vale lembrar que extrema pobreza para o Banco Mundial é referente a renda igual ou inferior a dois dólares e quinze centavos por dia, o que representa cerca de R$300,00 por mês.

Auxílio-Emergencial

Essa redução tem sido atribuída pelos bolsonaristas ao auxílio-emergencial, que começou a ser pago em abril/maio de 2020. De fato, é inegável que o auxílio-emergencial tenha sido crucial para minimizar a fome e os problemas financeiros de muitas famílias, que perderam emprego, renda, e até mesmo seus pequenos negócios próprios como autônomos, prestadores de serviço, enfim, muitas famílias que antes nunca precisaram de programas sociais do governo passaram por essa necessidade, a de terem de recorrer aos recursos governamentais. Graças ao auxílio-emergencial, a economia brasileira conseguiu um fôlego extra, mantendo-se, em algum nível, o consumo das famílias e, por consequência, as atividades comerciais e de serviços.

Contudo, é impossível comparar dados de levantamentos diferentes, de metodologias e objetivos e critérios distintos, e ainda realizados em períodos de tempo diversos. Vejamos que os dados do Banco Mundial são de 2019 e 2020. Já o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar foi feito entre dezembro de 2021 e abril de 2022, quando o governo Bolsonaro deixou de pagar o Auxílio-Emergencial. A pesquisa foi feita com base em entrevistas considerando-se o nível de Insegurança Alimentar em seus graus variados. Outro dado fundamental é que sair da linha de extrema pobreza (renda maior que R$300 mensais) não é necessariamente sinônimo de não mais passar fome. O preço da cesta básica, em média, está em torno de R$800,00 na maioria das capitais, em 2022.

O mais importante nessa discussão é que o problema da fome não pode ser resumido a números, favoráveis ou desfavoráveis a políticos e ideologias. Estes números divulgados em pesquisas, levantamentos, são referentes, apenas, a estimativas, a uma média que deveria nortear políticas públicas. Podem oscilar para mais ou para menos, dependendo do momento, da localidade do país e das situações específicas de cada família. Um lar com um ou dois filhos encontra menos dificuldade de garantir a segurança alimentar do que um que conta com três, quatro ou mais crianças. A existência de uma pessoa, apenas, a garantir essa renda familiar também é diferente de uma família em que ambos os cônjuges conseguem trabalhar em alguma atividade rentável.

Marketing eleitoreiro

Para além do marketing eleitoreiro, o que importa é que políticas públicas na área social que verdadeiramente contemplem quem precisa devem ser implantadas. Números causam impacto, preocupam ou consolam, a depender do enfoque de pesquisas, estudos e levantamentos utilizados como propaganda política. O futuro Bolsa-Família do próximo governo promete contemplar essas famílias necessitadas. Mas, paralelamente, terá de implementar medidas que promovam o crescimento da economia, a geração de emprego e renda. E buscar alternativas que não comprometam o teto de gastos. Menosprezar os limites da responsabilidade fiscal só acarretará consequências desastrosas, podendo gerar inflação, fuga de investidores, aumento da dívida pública, tudo o que um governo sério não deve fazer.

Merenda escolar

Sabemos que investimentos em educação, em qualidade, não, somente, em número de matrículas nas escolas, é a grande solução a longo prazo para o país. Mas, também, sabemos, que sanar o problema da fome e da insegurança alimentar é mais urgente. Afinal, não se consegue estudar com fome e graus variados de desnutrição. E que é notório o fato de que muitas famílias se sentem aliviadas com a matrícula do filho na escola unicamente porque a criança terá o que comer na merenda.

Fome e votos

A fome voltou ao debate nacional, lamentavelmente, por uma realidade que se impõe, mas, tem sido colocada de forma muito irresponsável. Tanto pelo bolsonarismo, que nega a existência dos 33 milhões de famintos, como pelo futuro governo, que a tem usado como justificativa para ultrapassar o teto de gastos. Estranhamente, não se cogita cortar gastos e privilégios nos primeiros escalões da República para matar a fome de tantos brasileiros.

Inversão de prioridades

A campanha eleitoral já terminou. É hora de voltarmos a realidade. Se eliminar a fome no Brasil é, mesmo, prioridade, por que não se discute remanejamentos realistas no Orçamento para bancar o Bolsa-Familia, sem endividar o país, inclusive, com a união de esforços de parlamentares para abrirem mão do tal do “orçamento secreto” que já deixou de ser secreto, aliás? Infelizmente, a percepção é a de que um Brasil sem um povo com fome não costuma dar votos. E que, antes da cesta básica para os pobres e miseráveis, é preciso garantir o caviar, o espumante, os vinhos finos, a lagosta para os governantes…

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