Sociedade da insônia

O filósofo coreano Byun-Chul Han observa no seu livro que o lugar em que a nossa Sociedade do Cansaço se mostra mais evidente é nas estações de metrô, onde vemos pessoas de todas as idades dormindo encostadas nos lugares mais improváveis. Ou as pessoas estão com a cara enfiadas nos smartphones ou dormindo, e uma cena parece causa e consequência da outra.

Nossas novas igrejas são os vídeos e workshops dos Gurus Motivacionais, sorrindo para as câmeras e proclamando: “Eu durmo quando eu morrer”.

Dormir pouco acelera nossa jornada rumo ao sono eterno, dizem todos os estudos. Aumenta a incidência de várias doenças, inclusive a obesidade. Quando eu falo para minhas pacientes que dormir mal aumenta o risco de doenças cardíacas ou o câncer, os resultados são modestos. Isso é assunto para daqui a algumas décadas, vamos ficar pendurados nas telas até a madrugada e que se danem as horas de sono perdidas. Quando eu falo que dormir mal engorda, deixa o cabelo sem brilho e a pele oleosa, aí o resultado é muito mais significativo. Homens, por sua vez, tem uma gama de interesses menos ampla, e ficam mesmo apavorados quando sabem que a falta de sono vai diminuir a performance e o tamanho de seus respectivos bimbos. Ou as joias da família. A medicina e a clínica também depende da persuasão e cada público responde ao seu nicho de argumentos. Agora, convencer os jovens millennials a dormir, bom, essa é uma tarefa até agora impossível. Ficar no silêncio, então, nem pensar.

Assisti um documentário que mostrava a ilha de Okinawa, no Japão, onde há um dos maiores índices de pessoas com mais de cem anos no planeta. Velhinhos de diversos modelos, tamanho e anos de fabricação convivem em centros de convivência e apoio. Muito já se estudou sobre o mistério dessa longevidade. A dieta com muito peixe e poucas calorias é um fator. Não se acham esses idosos no McDonald’s. A vida mais tranquila e pouco industrializada, também. Como se trata de uma ilha, a genética das pessoas também parece ser um fator. O que ninguém estuda é a potência da comunidade gerando essa proteção. Há uma rede impressionante de afeto e de relacionamentos nesse grupo, onde cada um se vê cuidado e cuidando de seus vizinhos. Como uma grande família, ou como as famílias poderiam ser. Sistemas de colaboração, não de competição. Sistemas de Silêncio, não de barulho.

Corta a cena e o documentário vai para Tóquio, onde uma jovem viúva fala dos últimos meses de vida de seu marido, gerente de produção de uma montadora de carros. O excesso de trabalho, o sono interrompido por telefonemas e problemas graves da linha de produção, as metas enlouquecidas, tudo isso foi tornando seu marido triste, solitário e isolado mesmo de sua filha bebê. Um belo dia ela recebe uma ligação dizendo que seu marido, que não completara quarenta anos, tivera uma parada cardíaca com morte imediata. Não é difícil estabelecer um paralelo entre um estilo de vida e outro, bem como seus resultados. Vamos trazer Okinawa para casa?

Vivemos uma época com muita poluição mental: somos bombardeados de informação, vídeos, filmes, fotografias e excesso de estímulo que cria a sensação permanente de falta. Eu devia saber mais, devia estar mais antenado, devia ser mais produtivo e ter alta perfomance. O excesso de estimulação e de tarefas tira um espaço muito, muito importante em nossa vida, que é o espaço para o Nada. Para o silêncio. Para desconectar de toda a tempestade de estímulo. Descansamos pulando de vídeo em vídeo do YouTube, de foto em foto das redes sociais. Isso significa que não há espaço para o descanso. Nem para um detox de estímulo.

A Psiquiatria descreve há poucos anos um novo quadro ansioso, a Nomofobia, uma doença em que a pessoa fica completamente em pânico em um lugar que não tenha Wi-Fi. Não sai do quarto, com medo da desconexão. A punição mais temida da molecada é ficar sem o celular, o tablet e a Smart TV. Ficar longe da internet é como perder a visão e a audição. Ou uma parte do corpo.

As culturas orientais valorizam o silêncio, a capacidade de fazer as coisas com vagar, sentindo os passos, os cheiros, os gostos da vida. Um jeito de nos rebelar contra o bombardeio de mídias, de tarefas, de discursos de medo e de ódio é reaprender a recarregar as energias em qualquer lugar: ficar em silêncio no barulho, desligar o celular antes de ir para cama, frequentar ambientes isentos de Internet e recuperar a capacidade de Silêncio (note o leitor quantas vezes essa palavra Silêncio aparece nesse texto), mesmo que todos estejam gritando à sua volta. Se estamos perdendo a batalha por um sono mais duradouro, precisamos de um sono mais efetivo. A cama tem que ser lugar para dormir e para boa vida sexual (que aliás melhora o sono). Mais nada. Para dormir bem, o sono deve ser protegido e preparado. Como um espaço sagrado.

Ter um lugar para o cuidado mútuo leva a uma vida mais longa e feliz.

Comer, rezar e amar (além de dormir) podem ser espaço de recarregar as baterias. Podemos comer devagar, rezar agradecendo ou aprendendo a meditar. E amar agora, não quando as metas infinitas estiverem batidas. É isso que pode subverter nossa Sociedade do Cansaço e do Burnout. Ou ficaremos obesos, com a pele estragada e com o bimbo pequeno. Não parece ser difícil escolher a melhor opção.

Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”

publicidade

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress