Ler, do latim legere, quer dizer escolher captar com os olhos. Mas esse gesto é tão antigo quanto o ser humano. Começamos lendo a natureza, o céu, o sol e as estrelas, para nos orientarmos nos caminhos do dia, da noite e da passagem dos dias. Depois, passamos à leitura dos alimentos e dos animais, distinguindo um fruto verde de um maduro, um venenoso de um benéfico, os selvagens e os amigáveis. Aos poucos, passamos a perceber, também, os sinais de quando alguém está saudável ou doente, feliz ou triste. Por fim, inventamos meios de escrever nossa interpretação do mundo em linguagens, imagens, símbolos.
Em comum, esses gestos nos mostram que somos criaturas leitoras, que percorremos o mundo e a nós mesmos como textos. Ler, por ser verbo, sinaliza um movimento de abertura, descoberta, exploração, viagem. Para quê? Guiarmo-nos nos caminhos do livro da vida, obra sempre provisória, continuamente reescrita, ora a borracha, ora a lápis. É por meio da leitura e da palavra que compreendemos nossa realidade e, por meio de palavras, nos entendermos.
Mas, e quando não conseguimos ler, ou o mundo se torna ilegível? O que essa dificuldade diz de nós, do tempo e do mundo nos quais vivemos? Gostaria, a partir de um conjunto de situações de leitura e de imagens do leitor, que prestemos atenção, também, nas dificuldades de perceber e compreender o que lemos. Por qual motivo? Pelo fato desses momentos serem tão instrutivos como aqueles em que conseguimos olhar ou falar sobre o que apreendemos de uma situação, página ou pessoa.
Muitos já abordaram as relações e impactos das tecnologias digitais na cultura do impresso e, por extensão, em como escrevemos e lemos. Fato é, nossa leitura, hoje, é mais acelerada e fragmentária do que era há 10 anos atrás. Isso se deve a vários motivos, sobretudo à ampliação da velocidade que produzimos e fazemos circular informações. Disso decorre um problema: essa aceleração da criação de conteúdos modificou as formas como atribuímos sentidos para o que lemos e, por extensão, aos modos que relacionamos essas informações à nós mesmos e à realidade ao nosso redor. Que tipo de leitor e de leituras essa aceleração tem produzido?
O escritor Alberto Manguel, inventivo explorador de lugares imaginários, propõe três figuras para pensarmos a história do leitor e das leituras: o viajante, a torre, a traça. O primeiro, percorre as páginas para descobrir o mundo. O segundo, se isola da realidade para a ler de longe. O último, tem fome de livros, mas muitas vezes se alimenta deles sem os digerir. Cada um deles encontra nos textos um ponto de partida para explorar o universo de formas diferentes. Como essas metáforas se relacionam com o contexto atual?
A traça se transforma em grilo, que pula de página em página, de aba em aba, de link em link, sem se demorar naquilo que lê/vê. O viajante, agora, transita não mais pela floresta de tinta, mas pelo oceano digital, a observar terras em constante atualização, passando de ponto a ponto da rede, parando apenas para um print ou selfie, aqui ou ali. A torre deu lugar à casa, refúgio no qual, a partir de telescópios, ora portáteis, como os smartphones, ora fixos, como as telas, permitem ver o mundo, mas sem os riscos da aproximação e do contato. Em comum, são leitores que experimentam pouco daquilo que leem, que não se demoram naquilo que as paisagens e as pessoas, com as quais têm contato, podem oferecer.
Só conseguimos ler ao percebermos as conexões entre textos e pessoas. E isso demanda não só envolvimento, mas disponibilidade. Dedicar tempo para ler é escolher compreender a si mesmo e as realidades nas quais se vive. Nesse ponto, a leitura é um convite ao reencontro com o mais próximo e distante de nós, no tempo e no espaço, seja o mundo fora de casa, seja a palma de nossas mãos. Se não conseguirmos ler, isso diz de nossa dificuldade de conexão com o que está ao nosso redor, apesar de hiperconectados. Cada texto amplia as nossas perspectivas, muda nosso olhar para os universos ao nosso redor. Retomando as metáforas do mundo como livro e da vida como viagem, lembremos que elas nunca permanecem as mesmas. Portanto, nos modifiquemos, também, envolvendo-nos, demoradamente, com os habitantes, as histórias, as paisagens e as palavras que encontrarmos em nossas jornadas.
Cleber Araújo Cabral, doutor em Estudos Literários, professor do curso de Letras do Centro Universitário Internacional Uninter.