Quando a Ilegalidade é a própria Lei

Quando a Ilegalidade é a própria Lei

por Luiz Sayão

“Quando os fundamentos estão sendo destruídos, que pode fazer o justo?” (Sl 11.3)

As palavras deste salmo davídico revelam uma preocupação das mais relevantes para o contexto contemporâneo. O salmo descreve uma situação de profunda decadência moral e social no antigo Israel. Não se sabe com certeza o contexto histórico, mas isso pouco altera a mensagem do texto.

O salmista está desesperado com o triunfo dos ímpios que ameaçam o justo abertamente. Há até mesmo um sentimento de incapacidade diante da maldade dominante. O sentimento beira o ceticismo: que pode fazer o justo? Alguns estudiosos entendem que o texto possa ser traduzido por “o que justo tem condições de fazer?”

Um exemplo claro disso é a boa preocupação que temos de obedecer à lei. Um bom cristão é aquele que obedece ao estado, que exerce o seu direito, dado por Deus (Rm 13.4). Por isso, os cristãos sérios e sinceros pagam seus impostos, procuram obedecer às leis e agem como bons cidadãos. Todavia, o mesmo texto bíblico estabelece bases para os limites da obediência civil. Em Atos 5.29, proibidos de anunciar o evangelho, Pedro e os apóstolos afirmam: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” Diante disso, precisamos ampliar o foco de nossa análise ética para entender que “quando os fundamentos estão sendo destruídos” as coisas precisam ser encaradas de modo diferente.

Infelizmente, as leis têm sido tão mal utilizadas, que, em muitos casos, viraram armas de opressão e de destruição. É importante ressaltar que a maioria das atrocidades humanas aconteceu e acontece ‘dentro da lei’. É com base ‘na lei’ que milhares de cristãos são assassinados em países islâmicos, fazendo eco aos outros milhares que morreram sob as ditaduras de inspiração marxista. Foi com base ‘na lei’ que Hitler perseguiu e matou cristãos, ciganos e judeus. ‘A lei’ tem dado direito de matar a milhões de assassinos do mundo que tiram a vida de bebês no ventre da mãe. Em alguns lugares isso já é um direito, um ‘sinal de civilidade’ e ainda é pago pelo estado. Com base na sua ‘lei’ os EUA desrespeitam leis internacionais e mantêm sua política imperialista no mundo. Com base na ‘lei’, os países muçulmanos tratam as mulheres como seres de ‘segunda classe’. Com base na ‘lei’, os políticos brasileiros votam seus próprios salários e aposentadorias e um salário ‘muito abaixo de mínimo’ para o povo.

A grande verdade é que grande parte da lei hoje serve aos interesses de poderosos cada vez mais ricos. Nunca se viu tanta concentração de poder e de riqueza nas últimas décadas no Brasil e em todo o mundo. Grande parte da humanidade agoniza para sobreviver, enquanto que os mais ricos investem ‘legalmente’ em produtos para cachorros e gatos, em ‘iates’ e em ‘diversão’. A verdade é que até a escravidão já se tornou comum hoje em muitos lugares.

Foi por esta razão que o escritor cristão francês, Jacques Ellul, chegou a propor uma ‘anarquia cristã’. Sua ideia é que os cristãos não poderiam confiar jamais em sistema político nenhum, mas teriam sempre de protestar contra o mal, como verdadeiros exemplares do legítimo ‘sal da terra’. Talvez Ellul tenha exagerado em sua proposta. Todavia, está na hora de alguma coisa ser feita, pois a maldade toma conta do mundo. Pelo menos, uma coisa o justo não pode fazer: ‘Agir como se nada estivesse acontecendo’. Precisamos de muita oração, muita prática da justiça em nossa vida pessoal e de um protesto coerente e adequado (que não seja politicamente vendido ou orientado) contra tanta impiedade. Misericórdia, ó Deus.

Luiz Sayão
Pastor, teólogo e hebraísta da Igreja Batista Nações Unidas (São Paulo-SP)

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