A tramitação do famigerado PL 1904, tachado de “PL do estupro” – e que equipara ao crime de homicídio a prática do aborto após 22 semanas de gestação, mesmo, em caso de estupro – foi adiada para agosto, após o recesso parlamentar. Uma decisão resultante de intensos protestos que tomaram as ruas de diversas capitais. O presidente da Câmara, Arthur Lira, e a bancada evangélica tomaram um susto com tamanha repercussão negativa do projeto de lei de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Uma proposta que chocou, não, apenas, aos progressistas, mas, a parcela de direita mais moderada, não adepta a extremismos, em razão do PL terminar por afetar, especialmente, meninas menores de idade que engravidam devido ao estupro.
Lira recuou, de forma desajeitada, constrangedora, visando “tirar o corpo fora”, em declaração a imprensa, na terça-feira (18.06). Cometeu a desfaçatez de afirmar que jamais pretendeu aprovar o PL sem debate. Adiou para o mês de agosto a tramitação a partir da formação de uma comissão que ainda passará por eleição de seus membros. Disse que não haverá retrocesso, nem prejuízos às mulheres. “Amplo debate, exaurindo-se todas as discussões, garantindo segurança jurídica, humana, moral e científica”, defendeu.
“Média” com evangélicos
O parlamentar alagoano, seguramente, não quis carregar esse ônus sozinho, visto que o PL, sequer, é uma pauta de interesse de seu mandato, marcado pelo fisiologismo puro. Apenas, usou o PL para “fazer média” com a bancada evangélica por que precisa dos votos destes parlamentares para eleger seu sucessor, nas eleições de fevereiro de 2025. Além de visar “emparedar” o presidente Lula numa questão que poderia se revelar uma verdadeira “casca de banana” ao presidente. O petista, sob pressão, teve de declarar publicamente sua opinião sobre o PL, assim como a primeira-dama Janja, e outros membros do governo. Lula, por exemplo, disse que é contra o aborto, mas que o PL 1904 é inaceitável. Primeiramente, cometeu uma gafe estrondosa ao classificar de “monstro” uma criança nascida de um estupro. No dia seguinte, a assessoria de comunicação do presidente já havia editado este trecho constrangedor, indelicado, da declaração do petista. Mas o fato é que a “casca de banana” foi jogada e Lula escorregou com este excesso na linguagem. Uma analogia infeliz, enfim.
“Fora, Lira”
Mas quem se deu muito mal, mesmo, foi Lira. Nos protestos de rua, o “fora, Lira” esteve em foco. Como se o presidente da Câmara fosse o único responsável pela aprovação em regime de urgência. Como se a ideia tivesse partido somente de Lira, como se ele fosse o maior interessado na defesa do projeto. Foi perceptível o oportunismo da esquerda para atacar Lira. Muito embora, a pauta dos protestos realmente constitua-se numa bandeira histórica da esquerda, foi perceptível que o progressismo tentou “matar dois coelhos com uma cajadada só”, tentando encontrar um pretexto para pedir a cabeça de Lira, o poderoso em Brasília que vive a atrapalhar os planos de Lula no Poder Legislativo.
Recuo tático
Como não é bobo, o presidente da Câmara sentiu a pressão e foi saindo de fininho. Percebeu que iria levar a culpa sozinho, que seria o único a desgastar-se politicamente e recuou. Na coletiva de imprensa, destacou que nada na Casa é fruto de uma decisão unilateral que parta somente dele. Lembrou que, na Câmara, todas as decisões são democráticas e, que, sendo, assim, o colegiado de líderes teria decidido adiar a tramitação do PL. “Não governo sozinho, não é verdadeira essa narrativa”, salientou.
Progressistas voltam às ruas
O resultado de toda a inutilidade deste disparatado PL, criado, apenas, para afrontar uma liminar de Alexandre de Moraes contra decisão do Conselho Federal de Medicina e jogar no PT e em Lula a pecha de “abortistas”, foi o despertar dos progressistas para os protestos de rua. A esquerda, até, então, havia perdido o protagonismo nas ruas. Há anos, quem conseguia levar o povo às ruas era, somente, Bolsonaro. Dessa vez, um grotesco PL sobre aborto tardio, envolvendo estupro, inclusive, conseguiu despertar reações inesperadas não, apenas, da esquerda, mas de liberais de centro e de direita. E até de alguns conservadores mais moderados. Ficou feio para a bancada evangélica, para Arthur Lira e para os parlamentares de Centro. Estes últimos, aliás, já ensaiam uma possível desistência do voto favorável.
Sem chance, no Senado
Arthur Lira, também, deve ter recuado ao verificar a sinalização desfavorável do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O mineiro declarou, com veemência, sua posição contrária ao PL e que não admitiria no Senado uma tramitação sem amplo debate. O presidente da Câmara terminaria por ficar isolado na defesa de um PL que, sequer, representa uma pauta cara a seu mandato, visto que nunca foi um conservador, muito menos, membro da bancada evangélica.
Censura do “Xandão”
Enfim, o presidente da Câmara, durante uma semana inteira, apanhou muito na imprensa, nas redes sociais e nos protestos de rua. E ainda correu o risco de ver sua ex-mulher desenterrar fatos do passado em que o acusou de violência doméstica. A “ex” do alagoano cogitou a hipótese de ir ao Congresso Nacional contar tudo o que teria sofrido nas mãos dele. Lira ficou tão apavorado que recorreu a Alexandre de Moraes pedindo censura a todo conteúdo disponível nas redes sociais contendo as acusações de sua ex-mulher sobre violência doméstica. Inclusive, uma entrevista que a “ex” deu a Folha de São Paulo, em 2021. O conteúdo foi descaradamente censurado por Alexandre de Moraes a pedido de Lira. Mas, menos de 24 horas depois, Moraes deu-se conta que passou de todos os limites em relação a censura e recuou, liberando o conteúdo com a justificativa de se tratar de material antigo. Mesmo o fato de Lira ter sido inocentado na justiça não justificaria o bloqueio, uma vez que se trata de material antigo que já se encontrava disponível ao público.
União dos progressistas
Enfim, este é o Congresso Nacional que temos. Este é o STF que temos. Tanto tempo, tanto “blá-blá-blá” e recursos públicos gastos com um PL absurdo, grotesco, que, provavelmente, será engavetado por Lira, afinal, em pleno ano de eleições municipais, quem irá arriscar “queimar a cara”, mais ainda? E que só serviu para ressuscitar a participação dos progressistas nas manifestações populares de rua.