Paródia com “Jesus gay” do grupo Porta dos Fundos gera movimento de boicote à Netflix

Paródia com “Jesus gay” do grupo Porta dos Fundos gera movimento de boicote à Netflix

por Vanessa Martins de Souza

Desde que foi lançado na Netflix, em 2 de dezembro, o especial de Natal do grupo de humor Porta dos Fundos intitulado ‘A Primeira Tentação de Cristo’ tem causado a ira indignada de grupos cristãos. Há, inclusive, movimentos religiosos na internet pressionando para que a Netflix retire da plataforma o filme. O Porta dos Fundos, criado em 2012, é um grupo de humor que faz vídeos de comédia em seu canal no Youtube no gênero paródia, um estilo de humor em que zoar de tudo e de todos é a tônica. Atualmente, é o sexto canal brasileiro do Youtube mais popular.

“Jesus gay” causa polêmica

Muito embora, esse seja um estilo de humor que não costuma agradar a todos, o grupo, em minha opinião, apresenta altos e baixos em suas criações: há sketches interessantes, razoavelmente engraçados, e outros ruins, sem graça. Nesse especial de Natal 2019, o tema central que parece ser o grande motivo da polêmica é o fato do grupo apresentar um “Jesus gay”, tentado no deserto pela sedução de outro homossexual por quem ele se “apaixona”. Mas, no desenrolar da trama, descobre que, na verdade, o homossexual que aparece no deserto é Lúcifer disfarçado. Enfim, ele derrota Lúcifer e segue com sua missão espiritual de evangelização, cumprindo o destino designado a ele por seu Pai celestial. Tudo isso contado com muita zoação, muito escracho, uma forma de humor rudimentar, infantilizada, até.

Paródia ao Cristianismo

Considero compreensível a indignação de tantos cristãos, porém, também acredito ser importante ponderar vários aspectos implicados, a começar por uma reflexão sobre os motivos mais profundos dessa indignação. O motivo principal seria o fato de terem criado um Jesus dotado de sexualidade e, para chocar mais ainda, homossexualidade? Pois, este não é o primeiro ano em que o Porta dos Fundos lança um especial de Natal: no ano passado, o lançamento na Netflix foi “Se beber, não ceie”. Também uma paródia a Jesus e ao Cristianismo, com referências à Santa Ceia, onde Jesus bebe pra caramba. É interessante o fato de que o especial de Natal de 2018 tenha passado incólume a polêmicas e manifestações indignadas desse porte, mesmo vencendo o prêmio Emmy Internacional de Melhor Série de Comédia.

Dois pesos e duas medidas

Outro ponto a considerar são os limites do que seria humor e do que seria desrespeito, seja a pessoas, religiões, grupos e outros. Nessa questão, é muito comum existirem dois pesos e duas medidas para julgar o que seria ofensivo e o que seria liberdade de expressão. Atualmente, por exemplo, com a predominância da cultura politicamente correta, tornou-se execrável fazer ou divulgar piadas sobre gays, negros, mulheres, pessoas com deficiência, as chamadas “minorias”. Tais expressões de humor são imediatamente tachadas de homofóbicas, racistas, machistas, preconceituosas, insensíveis, desrespeitosas às minorias. A patrulha é tão intensa que já se insinua repudiar piadas contra gordos, também, principalmente, às mulheres gordas. O termo “gordofobia” já entrou no dicionário politicamente correto e qualquer manifestação de desapreço a pessoas com sobrepeso ou obesas tem se tornado mais uma forma preconceituosa, desrespeitosa e ofensiva de expressão. Então, teríamos dois pesos e duas medidas, não? Pois, zoar de cristão parece ser a última moda, coisas de pessoas “descoladas”, de “espírito crítico”. Já zoar de gays, negros, mulheres, pessoas com deficiência representaria a escória da humanidade. E o que dizer de quem faz piada, sátira, deboche, de outras religiões como, o Islamismo, o Kardecismo, a Umbanda, o Candomblé, o Budismo? Para a “censura” politicamente correta é verdadeiramente um descalabro, sinal de intolerância religiosa, de desrespeito. A revista francesa Charlie Hebdo que o diga… Impossível esquecer do atentado terrorista islâmico a sua sede após publicação de capa com sátira à Maomé.

Em meio a tanta ira e intolerância de todos os lados, a única conclusão é a de que o ser humano é muito, muito complicado, muito contraditório, parcial e incoerente. Quando o humor não me atinge pessoalmente, está valendo, é bacana, é cool, é liberdade de expressão. Porém, se a piada fala de mim mesmo ou do grupo a qual pertenço, a coisa muda de figura…

Mais leveza e senso de humor

Creio que esteja faltando a todos mais leveza, espírito lúdico e capacidade de ironia e autoironia. Aprender a rirmos de nós mesmos e de tudo o que nos representa deveria estar entre nossas primeiras experiências de humor. Isso nos faria mais leves e tolerantes diante de quaisquer provocações e tentativas de satirização de outros a nós mesmos e a tudo o que nos pertence e nos representa. Seria muito recomendável apreciar o humor judaico, aquele bem ao estilo do cineasta judeu Woody Allen, em que, em grande parte de seus filmes, ele tira sarro de si mesmo (através de um personagem protagonista), de seus infortúnios e fraquezas. O humor judaico tem muito dessa pegada de autoironia refinada. Quando aprendemos a rir de nós mesmos, de nossas tolices, fraquezas e dificuldades, tudo se torna mais inteligente, menos dramático e tenso. Afinal, todos somos humanos dotados de dificuldades, defeitos, obsessões e fragilidades.Qual o problema?

Sucesso do humor negro inglês

O cinquentenário grupo britânico de comédia satírica Monty Python é outro exemplo de humor memorável, recheado de sátira e deboche, inclusive, com episódios bastante politicamente incorretos, não perdoando a ninguém: religiões, gays, homens, mulheres, ideologia de gênero, o famoso humor negro inglês. E, naquela época, quando estreou na TV britânica, em 1969, ninguém fazia tanto drama em relação a isso, todos podiam rir de tudo e de todos com mais tranquilidade e bom humor. Bons e velhos tempos que, talvez, não voltem mais…

Boicote à Netflix

Em relação ao especial de Natal do Porta dos Fundos, o repúdio tem sido tão intenso ao ponto de se promover o boicote à Netflix. Há muitas pessoas cancelando a assinatura da plataforma de serviço de streaming. Embora, pessoalmente, considere uma postura bastante radical, todos têm esse direito. Numa economia de livre mercado é assim que funciona: se o consumidor não está gostando do produto ou serviço oferecido, tem todo o direito de cancelá-lo. Todavia, o que não é recomendável é defender a censura, principalmente de expressões artísticas que, por mais que se revelem de “mau gosto” a tantos, não é um bom caminho em sociedades democráticas. Todos somos livres para apreciar ou não determinadas opiniões e expressões artísticas e culturais, bem como somos livres para criar o que quisermos. E, quem não gostar, também é livre para não assistir e inclusive expressar que não gostou, manifestar seu repúdio, seu boicote, até. Toda sociedade pautada na liberdade e democracia tem seu preço. Nem tudo o que veremos vamos gostar ou apreciar. Mas, qualquer coisa diferente disso torna-se muito mais séria e preocupante em relação ao caminho de civilização que buscamos.

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