Fico pensando que, no final das contas, a culpa é toda daquele filme: “O Segredo”, que tornou popular a Lei da Atração. O tal do “Segredo” (que não é segredo) dizia que a correta mentalização, com afeto e intensidade, ativa as forças do Universo para atrair o objeto do desejo. Com a correta mentalização (ou, como gritam gurus motivacionais, com o correto “mindset”), você para de atrair o que não quer e passa a atrair dinheiro, amor, aventuras. A Neurociência demonstra que uma parte dessa premissa não está de todo errada: visualizar a linha de chegada melhora o desempenho dos corredores, visualizar (e manter uma imagem constante) de seus objetivos permitem um maior índice de sucesso do que fazer as coisas a esmo. Mas não consta que colocar imagens de barcos, carrões e mansões coladas numa cartolina aumentem a chance de atrair tudo isso no futuro.
Então, pergunta a agradável pessoa aí do outro lado: por que começar o texto atacando a tal da Lei da Atração? Na verdade, o que está atacando é uma doença mais profunda e de grande amplitude em nosso mundo, que é o extrapolar da lei de Machiavel: “Os Fins justificam os Meios”. A frase é de Ovídio, mas foi atribuída a Nicolau Machiavel, filósofo ou cientista político na Florença do início do século XVI. O maquiavélico Nicolau ensinava que, se você atinge determinado resultado, não interessa os meios utilizados para chegar lá. Não precisamos dizer que muita gente acredita e pratica essa lei de Machiavel, ou de Ovídio, ou do Jogo de Poder em qualquer agrupamento humano. Mas essa lei parece estar sendo abolida por nossa Era Digital: estamos num mundo em que as pessoas tentam chegar aos fins sem passar pelos meios.
Uma cliente, professora há décadas, entrou em Burnout severo pelas pressões incríveis que sofria na escola: o professor deveria produzir a “gamificação” do ensino, tornando o mesmo mais divertido, mais aventureiro, como um vídeo game. A ideia não é ruim, mas a parte geradora de Burnout é decretar ao corpo Docente os Fins, fazer um ensino com inspiração em vídeo games, sem apresentar os Meios, ou seja, Como fazer essa transposição, Como criar um ambiente digital favorável ao tal Ensino-Vídeo Game? A atitude da escola é um “SE Vira” gigantesco. Essa falta de orientação dos Meios impedem os Fins. E a culpa é de quem está abaixo.
Um conhecido me contou que apontou para um estagiário um erro que ele cometia, de maneira repetida. Explicou como uma tarefa deveria ser realizada. O rapaz foi reclamar no RH sobre o “assédio moral” que estava sofrendo e fez uma denúncia falsa no Ministério do Trabalho. A tal da Geração Z, ou Geração “Floco de Neve” reage violentamente a qualquer tipo de correção e derrete diante das dificuldades? Essa é a visão de chefes, professores e empregadores. Mas a questão pode ser ainda mais grave e profunda: uma educação e realização de tarefas baseada no “Recorta e Cola” faz com que os alunos realizem as tarefas copiando e colando trechos do trabalho de outras pessoas sem ter noção de como o conhecimento foi construído, como pode ser aplicado e quais dúvidas podem ser geradas, levando a mais respostas. A tarefa é fazer um trabalho sobre o Quilombo do Palmares, eu vou lá, recorto e colo alguns textos sobre o assunto, organizo e entrego. Sem saber nada sobre Quilombo, Palmares ou Zumbi. Produzir um Fim elimina o Processo que levaria a esse fim. Quando chega na vida profissional e o chefe aponta uma falha estrutural de método ou de entendimento do COMO chegar a um resultado, então vamos denunciar esse assediador moral.
Coloco os dois lados da moeda para garantir ataques de gregos e troianos: o gestor que coloca os fins sem apontar os meios é tão incapaz quanto um funcionário que comete o mesmo erro na mesma planilha e não consegue entender ONDE está a sua falha de entendimento, que gera o erro.
Os Coros da Tragédia grega cantam que as desgraças acontecem pela Irreflexão, a incapacidade de se debruçar sobre seus atos para evitar cometer erros graves e irreparáveis. Vivemos numa sociedade digital em que as pessoas acreditam que, se tiverem o mindset correto, podem atingir qualquer objetivo. E não podem.
Raul Seixas terminou uma de suas músicas com a frase: Eu sou o Início, o Fim e o Meio. Hoje ele cantaria: Eu sou o Fim, com pouco Início e nenhum Meio.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro Stress – o coelho de Alice tem sempre muita pressa