No documentário da National Geographic, “Jane”, sobre a extraordinária cientista e conservacionista Jane Goodall, vemos uma doce senhora, chegando aos noventa anos, dizendo que “Sente que tem uma mensagem para passar, e foi colocada nesse planeta para fazê-lo. Eu tenho que fazer isso”. Apesar de sua avançada idade, seu senso de propósito continua movendo sua vida, suas falas, seu trabalho. Fico pensando nessas raras pessoas que tem esse senso de chamado, de convocação da vida para seguir sua missão e não olhar para trás.
Esse senso de chamado é inerente à nossa experiência humana? Não sei se a resposta cabe ao cientista ou ao psicoterapeuta presentes aqui no autor dessas mal tecladas linhas, mas vou dedicar esse texto a essa reflexão.
Jane descreve, em uma entrevista para o canal do Youtube, “The Well”, uma experiência fundamental na sua infância: quando tinha quatro anos, sua mãe a levou para uma fazenda e ela viu um ovo, ao visitar o galinheiro de lá. Perguntou para a sua mãe como que a galinha colocava o ovo, e sua mãe desconversou. A menina Jane já tinha em si a semente da Dra Jane Goodall, porque não gostou da resposta e resolveu investigar as galinhas por conta própria. Seguiu uma galinha marrom até seu poleiro e lá ficou por horas. Quando as pessoas já procuravam a criança, meio em desespero, a menina reaparece cheia de penas e conta para sua mãe a sua aventura. E, sobretudo, descreve detalhadamente tudo o que viu, no maravilhoso processo de colocação do ovo que a galinha observada realizara. Nesse ponto eu destaco um ponto essencial da sua história: a sua mãe, no final dos anos trinta do século passado, poderia ter dado uma bronca na menina e mandado parar com aquela bobagem de sumir para observar galinhas. Seria uma reação cabível hoje, com pais supervigilantes e constantemente apavorados. Mas não foi essa a reação dela. A sua mãe ouviu atentamente a descrição, com uma ponta de orgulho. Nesse episódio, ela vivenciou pela primeira vez o Método Científico: você tem uma pergunta, a resposta não é correta, estuda o fenômeno, descreve o que acontece, vê o resultado e descreve como aquilo ocorre.
Jane Goodall é uma primatologista, pioneira na área, e nos anos sessenta passou muitos anos nas florestas da Tanzânia estudando chimpanzés e suas relações sociais e afetivas. Ela descreve esse período como a época mais feliz de sua vida. Hoje se dedica a uma fundação para promover a preservação das florestas onde vivem seus amados chimpanzés e todo esse maravilhoso ecossistema. Mas não é disso que vamos falar nesse texto. Vamos falar sobre o Daimon.
Daimon não é demônio. É, na Mitologia Grega, o espírito que deseja, que revela o caminho do Herói. Daimon é o Gênio, não o da Lâmpada, mas aquele que sussurra para que lado devemos seguir para desenvolver nosso potencial. Se a nossa vida é uma semente que pode, ou não, florescer, então o Daimon é aquela força invisível que transforma uma pequena semente em uma árvore. É uma força do que o psiquiatra Carl Jung chamou de Individuação.
Jane Goodall disse para sua incrível mãe, aos dez anos de idade, que “quando crescer vou para a África”. Em vez de responder, como uma mãe da época faria, “deixa de bobagem e vá se preparar para arrumar um marido”, sua mãe respondeu: “se você quer isso, vai ter que estudar, se preparar muito, agarrar todas as oportunidades e, eventualmente, vai conseguir realizar seu sonho. Um manual completo para trazer à realidade o sonho do Daimon, o sussurro do Gênio.
Isso pode parecer um daqueles textos chatos e motivacionais, de “siga o seu sonho”. Não é a intenção. Mas acho que a mãe de Jane Goodall um verdadeiro manual de como ouvir, direcionar e dar suporte para o Gênio sussurrando no ouvido de sua filha. Sem dúvida, foi obra do Gênio invisível e do mistério da vida colocar na mesma família essas mulheres extraordinárias e muito adiante de seu tempo.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”