O tempo de vida. Tudo tem seu tempo. As flores que enfeitam o mundo logo murcham. A lâmpada que ilumina o espaço finito tem seu tempo. Há um tempo para a inocência da infância, assim como para os impulsos inovadores dos adolescentes. Há um tempo para a árvore frutífera produzir seus frutos e também para estes que embelezam as mesas e acariciam as bocas pelos seus doces sabores. Em Eclesiastes, um livro da Bíblia Sagrada, encontra-se: “…há um tempo para todo propósito debaixo do céu. Existe um tempo certo para cada coisa, momento oportuno para cada propósito debaixo do Sol, tempo de nascer, tempo de morrer; tempo de plantar, tempo para colher. Tudo tem seu tempo determinado”.
Há que se refletir sobre a finitude que tanto assusta muitos humanos. Essa transitoriedade tem seu início na mais tenra idade de uma criança, quando, por forças de circunstâncias naturais, ela se afasta fisicamente da sua mãe para iniciar sua jornada acadêmica e, assim, idealizar a sua personalidade como sujeito da sua própria história. É a primeira perda presencial temporária sofrida.
Uma criança nasce com potencial de humanidade. Ela vai desenvolver essa potencialidade pelas suas experiências de vida. Na família, na escola, com os seus pares e, na vida adulta, com as suas atividades laborais. Na medida em que o tempo passa por princípios neurocientíficos, a ciência que estuda o cérebro, pode-se postular que as pessoas se tornam o que são pelas suas experiências de vida. Tais vivências dizem respeito às conquistas, aos desejos – realizados ou não -, aos aplausos, às amizades, aos amores, às alegrias… mas também aos desatinos, às tristezas, às separações, às frustrações. Acrescente-se ainda, que as experiências são necessárias para o desenvolvimento da inteligência humana, que será utilizada para lidar com o mundo. Seus desafios, seus ganhos e suas perdas também.
Por volta dos 13 e 14 anos de idade, aquela criança que outrora afastou-se da sua mãe, agora entra numa nova idade, a adolescência. Esse novo tempo se caracteriza também pelo afastamento da infância. Eis que surge então, uma nova perda. A criança interior ficou para trás. Os brinquedos já não são os mesmos, assim como os amigos. O adolescente começa a compreender que a vida é mutável. Se, por ventura, ele já teve contatos nessa fase dos seus estudos com reflexões filosóficas e, dentro deles, conheceu os ensinamentos de Heráclito (540 a.C. – 470 a.C.), concluiu que a única certeza da vida é a incerteza. “Tudo flui como um rio”.
O conhecimento humano, conquistado ao longo do tempo, está arquivado no cérebro. São as memórias de longo prazo. Também nas profundezas do encéfalo estão arquivadas as memórias emocionais. Aquelas experiências vividas que foram marcantes como o episódio em que o avião bateu na torre em 11/09/2001. Quem viveu tal experiência certamente se recorda onde estava e com quem estava naquela data. Não tem registro mnemônico nem do dia anterior e também do dia posterior ao ataque. Assim, habita as memórias emocionais, a primeira professora, a primeira bicicleta, a(o) primeira namorada(o), o gesto sublime ao ler o próprio nome na lista dos aprovados no concurso vestibular.
Mas o cérebro não dispõe de um software infinito. Ele precisa sofrer uma espécie de lapidação para que a evolução humana aconteça. Para tanto, ele dá sumiço às informações que são consideradas de menor importância para dar lugar às mais recentes e significativas. Então, para ganhar conhecimentos novos é preciso perder outros. Novamente habita aqui a sabedoria da natureza. O afastamento da consciência de certos conteúdos para que outros aflorem. Trata-se de um pequeno luto. Nada é permanente nesta vida. Nem mesmo as memórias do conhecimento.
O homem é um ser biológico, psicológico, social e espiritual. Dentro destas dimensões, ele conquista e convive com simbólicos amigos que chegam à vida de cada um de forma suave e silenciosa para conquistarem um lugar de destaque “no lado esquerdo do peito”, como escreveu o poeta. Os amigos são gentis, empáticos e compassivos. Falam de paz para aquietar as almas dissonantes com a vida. Doam-se por inteiro na serena compreensão das imperfeições humanas. Amigos são como as músicas que, com a sua sonoridade, deixam marcas indeléveis nas memórias emocionais.
Como se em imaginação, cada um tivesse o controle sobre as coisas da vida e vislumbrasse um destino que levasse a acreditar que viveria eternamente com as pessoas queridas, seus amigos, esquecendo-se de Heráclito e de Eclesiastes e, como cantou Chico Buarque, “… A gente quer ter voz ativa; no nosso destino mandar; mas eis que chega a roda-viva; e carrega o destino pra lá…”. Os amigos falecem. Morrem os Maurícios, as Marias, os Richards. Aí o luto. A perda final; a separação eterna; o desaparecimento deles na realidade externa; e o real e insuportável da vida se instala.
E agora? O que fazer?
Não existe uma fórmula mágica para a elaboração do luto. Ele é uma experiência única e individual e vai depender, e muito, da história de vida de cada um. Como as pequenas ou grandes perdas ao longo da vida foram vivenciadas. Porque elas foram, de forma sutil, conscientizando de que um dia a morte final seria inevitável. Feliz daquele que consegue perceber isso. O sentimento de negação, de revolta, de injustiça, de raiva são partes inerentes diante da perda de quem se era próximo, cujos laços de união se alicerçavam na biologia, na estima, na amizade, na admiração ou no amor. Cada um vai para o outro lado da rua da vida no seu devido tempo.
Que se reflita que o luto é inevitável. Que vem, mas que também precisa ir para não transformar-se em patologia, impedindo que a vida continue. Ele é prova dura. É um real que se manifesta no corpo e na mente. Que se compreenda que o luto é o preço que se paga por amar.
Para que exista o perfume, uma flor deverá ter existido. A flor que precede o perfume é como o ente querido que precede as suaves lembranças deixadas por ele enquanto em vida. A essência deixada. Que cada um, do seu jeito, troque a dor pela saudade para compreender e aceitar a perda final. O professor ensina e cobra o que ensinou nas provas para verificar se os seus alunos aprenderam. A vida cria os desafios para que cada um evolua, ou seja, a vida é o contrário do professor. Aquele, o professor, ensina e cobra. Esta, a vida, cobra e ensina. Que se pense nisto.
Ivo Carraro é professor e psicólogo do Centro Universitário Internacional Uninter