O filme “Nise: no Coração da Loucura” mostra o trabalho da psiquiatra alagoana Nise da Silveira, que, nos anos 40 e 50, enfrentava os colegas adeptos de tratamentos radicais para as doenças psiquiátricas, alguns deles com características punitivas. Como era questionadora e incômoda, foi transferida para a ala dos doentes crônicos, que praticamente não recebiam nenhum investimento terapêutico. A valente psiquiatra, a única mulher de sua turma de formatura, era influenciada pelas ideias do psiquiatra suíço C.G. Jung, que três décadas começou a ouvir atentamente o que os pacientes diziam em seus surtos psicóticos, tentando devolver capacidade de entendimento e significado para suas psiques em carne viva.
Nise deu aos doentes uma forma de expressão, com telas, pincéis e tinta. Os pacientes começavam, a partir da pintura e outras atividades artísticas, a se reorganizarem e se comunicarem com o que chamamos de Realidade. No filme, podemos notar o incômodo dos colegas, o que atinge o auge quando Nise incorpora à equipe cães e gatos, que são adotados pelos pacientes e, ao estabelecer esse vínculo, começam a melhorar e se estruturar. O diretor pede a retirada dos bichos, o que a baixinha invocada refuta, dizendo que os bichos propiciam uma experiência de afeto curativa. Os cachorros eram co-terapeutas e membros da equipe. Corta a cena da discussão, pacientes e bichos estão numa festa de São João, em comunhão. No dia seguinte, um grito irrompe, seguido de choro. Uma interna grita: “Mataram”! Observamos, com o olhar horrorizado de Nise, os cachorros mortos no pátio, envenenados a mando do Diretor. Muitos pacientes tiveram recaídas e regressões graves, algumas delas definitivas.
Nise da Silveira estava à frente de seu tempo em tudo, inclusive na utilização de bichos de estimação como agentes terapêuticos. Estudos mostram que o contato e o cuidado com os bichos liberam Endorfinas e Serotonina, gerando prazer e diminuindo os hormônios do estresse. O contato com um pet libera as mesmas substâncias que liberamos quando vemos um bebê. É como um gatilho de fofice, que nos faz instintivamente proteger esses seres mais vulneráveis. Recebemos vídeos fofos de pets nas Redes Sociais gerando zilhões de likes e comentários. Gosto particularmente de vídeos de cachorros fazendo aula de Yoga e imitando as posições da pessoa treinando. Uma das características que provocam nossa ternura pelos pets é a sua capacidade de empatia e imitação, garantida por seus Neurônios-Espelho. O que são esses Neurônios? Quando alguém boceja, temos vontade de bocejar também.
O riso, o choro, também tem essa característica contagiosa. Quando vemos a cena de um atleta quebrando a perna, nos encolhemos na cadeira e gritamos: Ai! Tudo isso ocorre pela ação de nossos Neurônios-Espelho. Eles permitem sentir o que o outro está sentindo. Isso constitui a relação com as outras pessoas. Psicopatas se caracterizam justamente pela incapacidade de sentir o que o outro sente ou se importar com isso. Eles podem perpetrar atos de imensa violência sem dar importância ao sofrimento do outro ser humano, até porque não se constituem como alguém que sente o que o outro sente. Pessoas que sofrem anos de abuso perdem a sensibilidade para o sofrimento de si e do outro. Podemos dizer que a nossa Inteligência Emocional depende profundamente de nossos Neurônios-Espelho e da capacidade de empatia.
Se Nise da Silveira não tivesse nascido no Brasil, seria candidata ao Prêmio Nobel da Paz. Sua alma libertária tirou os doentes das masmorras e dos depósitos de gente e lhes devolveu a própria subjetividade. Sua capacidade amorosa gigante manteve seus pacientes e sua casa cheia de bichos e de amor. Para mim é uma honra ser um Psiquiatra Junguiano, andando pelas trilhas que foram abertas por essa mulher impressionante. Trilhas de Criação de Consciência e Cura.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”