Muito recentemente, o governador de um estado brasileiro filiou-se a um grande partido com a finalidade de se candidatar à reeleição. Esse ato, legítimo no regime democrático, esconde algumas das maiores mazelas brasileiras: a corrupção no meio político e a sensação de impunidade que permeia toda a sociedade.
O ato de filiação desse governador, anunciado com pompa e circunstância, é verdadeiro escárnio à moral e à ética que deveriam ser os pilares da atividade política e da administração pública como, aliás, preceitua a nossa Constituição Federal.
Isso porque o político em questão acaba de se tornar réu em ação penal. Envolvido em um escândalo de superfaturamento na compra de equipamentos para o combate à Covid-19, com a utilização de recursos públicos, foi denunciado pela Procuradoria da República e, por decisão unânime, uma das turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu a denúncia, dando início a um processo criminal contra o governador. A ele são imputados crimes como fraude em licitação, peculato, dispensa irregular de licitação e embaraço à investigação. Não é pouca coisa, como também não foi pequeno o valor dispendido na contratação investigada.
O Estado Democrático de Direito garante a qualquer cidadão acusado o direito à ampla defesa. E isso, evidentemente, vale também nesse caso, como não poderia deixar de ser. Tanto que seus advogados já atuaram na tentativa de arquivar a investigação, sem sucesso, e continuarão em sua defesa nos tribunais superiores.
A questão é que nossa legislação ainda permite situações contraditórias. Esse caso citado é uma delas. O governador tornou-se réu, porém não foi afastado do cargo e poderá ser candidato à reeleição. Mantido no maior cargo executivo de seu estado, está autorizado a continuar ordenando despesas, assinando contratos e definindo onde gastar o dinheiro público. Mais que isso: terá acesso à parte da verba dos bilionários Fundo Eleitoral e Fundo Partidário para o financiamento de sua campanha à reeleição, o que em tese lhe garante certa vantagem no pleito, não apenas porque seu partido – por critério de tamanho da bancada no Congresso Nacional – terá a disposição uma das maiores fatias desses fundos, mas notadamente porque também não precisa se afastar do cargo para concorrer a um novo mandato.
Há ainda outra questão. Se vencer a eleição e vier a ser condenado e afastado do cargo – o que é difícil em razão do grande número de recursos previstos na legislação processual e diante da proibição da prisão mesmo após condenação em segunda instância, já definida pelo STF -, assumirá o vice-governador. E é sabida a pouca importância que o eleitor brasileiro dispensa à figura do vice na hora do voto, sequer se lembrando do seu nome passados poucos meses da eleição. Cultura que, em nome da boa democracia, precisa ser mudada em um país no qual três vices assumiram em definitivo a Presidência da República após a redemocratização: José Sarney, com a morte de Tancredo Neves, e Itamar Franco e Michel Temer, com os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, respectivamente.
Se o sistema judiciário dispõe de legítimos mecanismos de garantia do contraditório e da ampla defesa, a fim de se evitar a condenação injusta de inocentes, por outro lado é preciso que o Brasil crie instrumentos legais para a proteção da população e do erário contra gestores públicos envolvidos com atos de imoralidade administrativa, sem que isso represente qualquer ameaça à presunção da inocência.
Sem isso, continuaremos assistindo a casos como o de outro governador, condenado em 2019 a mais de 6 anos de prisão em regime aberto por causa de um escândalo envolvendo o desvio de valores de empréstimos consignados de servidores públicos. Apesar da gravidade do caso, o governador foi mantido no cargo porque o crime aconteceu em mandato anterior. Lamentavelmente, não é um episódio isolado e a história está cheia de exemplos.
Essa leniência com que o Brasil trata os atos de corrupção, ainda que tenha havido alguns avanços nos últimos anos, corrói a democracia, desacredita as instituições, alimenta a sensação de impunidade e drena os cofres públicos.
O Brasil, num grande pacto envolvendo Executivo, Legislativo, Judiciário e a sociedade civil, precisa, urgentemente, trabalhar por reformas que moralizem a administração pública e deem uma resposta firme e efetiva para quem pensa que pode administrar uma cidade, um estado ou o país como um balcão de negócios. Em uma nação de tamanhas carências, não há mais espaço para a imoralidade. O eleitor mais incauto pode se deixar enganar, iludido por falsas promessas e campanhas milionárias, mas o voto não legitima a improbidade.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor do livro “Brasil: um país à deriva”.