A Gazeta Região Metropolitana: O público leigo, em geral, não costuma ter conhecimento das funções e atribuições do Ministério Público, como braço auxiliar do Poder Judiciário. Confunde-se, inclusive, o MP com o próprio Poder Judiciário, atribuindo-lhe, erroneamente, a função de julgar. Como isso pode ser melhor explanado para um bom entendimento da população, em geral?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli – MPPR: Há, de fato, uma confusão bastante comum. Ela acontece porque parte das funções do Ministério Público são desempenhadas perante o Juízo. Entretanto, a atuação próxima ao Poder Judiciário não significa que o Ministério Público seja um “braço auxiliar” dele. Ao contrário, com a missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da CF), o Ministério Público é independente dos demais Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). Tal autonomia é garantida pela Constituição porque é imprescindível aos membros do Ministério Público para a defesa, de forma destemida, de relevantes interesses da sociedade.
Para bem esclarecer a diferença das atuações do Ministério Público e do Poder Judiciário, cabe um exemplo simples: diante da ocorrência de um crime de roubo, o Ministério Público, após a devida investigação, formula a acusação, levando ao conhecimento do Poder Judiciário, em nome da sociedade, a pretensão de condenação do autor do delito; à Justiça, sim, caberá o julgamento do caso. A separação das funções de acusar e julgar é pressuposto de imparcialidade para um processo justo. Importante registrar, ainda, que o Ministério Público tem também enorme atuação extrajudicial (ou seja, fora do Poder Judiciário), resolvendo diretamente as demandas da sociedade (como, por exemplo, quando faz termos de ajustamento de conduta ou acordos de leniência com autores de ilícitos).
A Gazeta: Outro ponto que necessita de maiores esclarecimentos é referente a “promotoria oferecer denúncia ao juiz”. Poderia discorrer como se dá esse processo até o momento do oferecimento da denúncia ao juiz?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: Denúncia é o nome técnico do documento que sintetiza a acusação do Ministério Público contra o autor de um crime, apresentada ao Poder Judiciário para abertura de uma ação penal. Sempre que acontece um delito (com notícia à polícia), é instaurado um procedimento investigatório (em regra, um inquérito policial), no qual são feitas as diligências necessárias para o esclarecimento do caso (dentre elas, por exemplo, a oitiva de testemunhas, a realização de perícia ou a apreensão de objetos). O resultado dessa apuração é remetido ao Ministério Público. Então, o promotor de Justiça faz uma avaliação sobre a existência ou não de prova de materialidade e de indícios de autoria. Caso se convença da necessidade de responsabilizar penalmente quem praticou o ilícito, apresentará uma denúncia à Justiça para a abertura do processo criminal, sustentando, assim, a acusação que será depois julgada pelo Poder Judiciário. Excepcionalmente, a denúncia pode se basear em outros elementos de informação, como, por exemplo, os obtidos em procedimentos investigatórios conduzidos pelo próprio Ministério Público ou por Comissões Parlamentares de Inquérito.
A Gazeta: Poucos anos atrás, houve um debate na sociedade sobre a atribuição do Ministério Público, em casos, especialmente, de corrupção, em investigações em parceria com a Polícia Federal. Como, atualmente, o MP, em geral, atua nessa questão? O MP estadual também está autorizado a investigar nos casos de áreas do Direito concernentes à esfera estadual?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: O poder investigatório de natureza penal do Ministério Público está atualmente consolidado, seja em decorrência de interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal sobre as atribuições constitucionais do órgão (RE 593727), seja em razão da rejeição da PEC 37/2011 na Câmara dos Deputados, em 2013 (após ampla mobilização da sociedade). Respeitando o âmbito das atribuições constitucionais da Polícia Judiciária, o Ministério Público, como titular da ação penal, pode promover as próprias apurações criminais, o que se mostra muito importante em situações nas quais a independência do órgão constitui fator determinante para o êxito das investigações (como, por exemplo, nos casos de corrupção de agentes políticos ou de organizações criminosas integradas por policiais). Isso se faz tanto no âmbito federal quanto no âmbito estadual, pois não há, em essência, diferenças entre a atuação do Ministério Público União e dos Estados.
A Gazeta: Ao nível da Justiça Estadual, que é onde o MPPR atua, quais as áreas do Direito que são de suas atribuições?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: O Ministério Público do Estado do Paraná, dada a atribuição constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tem um amplo espectro de atividade, voltado a demandas que se refletem em toda a coletividade. Por isso, além da atuação criminal, exerce a tutela da educação, da saúde pública, do meio ambiente, do patrimônio público, da criança e do adolescente, do idoso, das pessoas com deficiência, do consumidor, dos direitos humanos, da habitação e urbanismo, dentre outros valores. Enfim, promove direitos fundamentais para assegurar a concretização da cidadania, especialmente dos mais vulneráveis. Estão fora do âmbito de atuação do Ministério Público Estadual as questões das alçadas específicas do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Militar.
A Gazeta: Quais os tipos de serviços em que o cidadão pode recorrer no MPPR?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: O atendimento ao público e a aproximação com a comunidade são pilares que norteiam a atividade do Ministério Público e, por consequência, a demanda do cidadão, nas mais diversas áreas, é que determina que tipo de intervenção será realizada pelo órgão. A notícia de desvio de recursos públicos, de abandono de um idoso vulnerável, de maus-tratos contra criança, de falta de vagas em creche, de dificuldade na obtenção de remédios, de poluição severa de um rio, de ausência de acessibilidade, de discriminação racial ou de fraudes no processo eleitoral são questões que exemplificam a prestação de serviços feita pelo Ministério Público, buscando assegurar o respeito à lei e à Constituição.
A Gazeta: Como o cidadão deve proceder em caso de necessidade de solicitação de um serviço ao MP, a exemplo de busca de seus direitos e garantias individuais e coletivas?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: Todas as cidades paranaenses têm, ao menos, uma Promotoria de Justiça que atende a população local. Nas cidades maiores, há várias Promotorias de Justiça, com atendimento dividido por área. Os meios de contato (endereços, telefones e e-mail) podem ser encontrados na página do MPPR na internet, onde também está disponível um formulário on-line. Durante o período de pandemia, está sendo dada prioridade ao atendimento remoto, exceto nos casos em que seja indispensável o atendimento presencial. As informações estão no site www.mppr.mp.br, no link Serviços – Atendimento à População.
A Gazeta: O que o cidadão pode esperar do trabalho da promotoria quando busca a defesa de um direito não atendido ou denuncia alguma possível violação da lei?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: Comprometimento com a causa pública e transparência na atuação. Todas as notícias recebidas pelas Promotorias de Justiça, após devidamente registradas, são levadas ao conhecimento do membro do Ministério Público. Admitida a demanda como de atribuição do órgão, é aberto um procedimento para avaliar as medidas, extrajudiciais ou judiciais, que podem ser adotadas para prevenir ou reparar a violação noticiada. As decisões tomadas são comunicadas à parte interessada – que, inclusive, tem o direito de recorrer aos órgãos da Administração Superior do Ministério Público. Apenas em 2021, já foram oferecidas 46.270 denúncias pelo MPPR e foram feitos 35.900 atendimentos ao público.
A Gazeta: Existe a possibilidade de se efetuar denúncias anônimas. Para quais casos essa proteção da identidade do denunciante é assegurada?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: A vedação ao anonimato deve ser a regra. Excepcionalmente, admite-se a comunicação anônima de fatos que ensejam a atuação do Ministério Público. O prosseguimento da demanda, entretanto, depende da apresentação de dados e/ou documentos que possibilitem a averiguação preliminar dos fatos informados. A proteção da identidade do denunciante, da mesma forma, somente deve ser resguardada em situações excepcionais, diante da existência de um efetivo e grave risco.
A Gazeta: Qual a função de um promotor público?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: O termo “promotor público” não é mais utilizado. Atualmente, a designação correta é promotor de Justiça. Suas funções estão vinculadas à atividade de membro do Ministério Público em primeira instância. São alguns exemplos, mas não exaurientes: propositura e acompanhamento das ações penais; controle externo da atividade policial; intervenção em processos judiciais com interesses de incapaz; fiscalização de entidades que acolham idosos, crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência; formalização de acordos ou propositura de ações para a tutela coletiva (saúde, educação, meio ambiente, consumidor etc.); fiscalização do processo eleitoral; acompanhamento dos orçamentos públicos; visitas em estabelecimentos penais; velamento de fundações; e atendimento ao público.
A Gazeta: Qual a função de um Procurador de Justiça Estadual?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: Suas funções estão vinculadas à atividade de membro do Ministério Público em segunda instância e Tribunais Superiores, especialmente, a condução dos processos de interesse da instituição nas ditas Cortes.
A Gazeta: O público, em geral, obtém alguma noção do trabalho de um promotor de justiça quando se trata de julgamentos de crimes de grande repercussão local ou nacional, que geram forte comoção social, a exemplo dos casos da Suzanne Von Richtofen e da Elize Matsunaga, e do então deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho. Nesses casos, a promotoria exerce a função de “advogado de acusação”. Em quais outros casos o promotor exerce essa mesma função, mesmo não se tratando de julgamentos de muita repercussão na mídia e comoção social?
Dr. Humberto Eduardo Pucinelli: O Ministério Público é o titular da ação penal pública. Significa dizer que, nos processos criminais que tramitam na Justiça, é o promotor de Justiça quem, em regra, promove a acusação contra os réus. E isso não se faz somente nos casos de repercussão, mas, ao contrário, na quase totalidade das demandas (excepcionalmente, alguns delitos se processam por iniciativa da própria vítima, como, por exemplo, nos crimes contra a honra). Além dos homicídios referidos na pergunta (todos crimes dolosos contra a vida), o Ministério Público figura como órgão de acusação em diversos outros tipos de crimes, como roubo, latrocínio, corrupção, associação criminosa, tráfico de drogas, prevaricação, tortura etc. Importante observar que, mesmo quando acusa, o Ministério Público, em verdade, está a defender (a sociedade e o ofendido).