No final dos anos 90 eu tinha terminado o meu Mestrado e pedido demissão de um emprego que eu amava, mas que consumia muita energia, sufocando meu consultório, que precisava de espaço para crescer (e cresceu, felizmente). Um amigo, dono de uma editora onde eu trabalhara nos tempos de estudante, aproveitou a deixa e me levou de volta para lá. Onde também deu para fazer um trabalho bacana de escrever livros, implantar programas de Prevenção de Dependência Química, Alcoolismo e Stress dentro de escolas e empresas. Foi trabalhoso e divertido, e como eu sou metido a sebo, também entrei na coordenação da equipe de Marketing e Vendas, porque lá estava o coração do sucesso e fracasso do projeto como um todo.
Não sei até hoje se a equipe me amava ou odiava, mas imagino que se fizéssemos uma escala, estaria mais para o lado do ódio do que do amor. Uma apresentação que eu fiz para as equipes pode estar na raiz dessa popularidade baixa. Nessa apresentação eu fiz uma provocação sobre o comportamento da equipe, que eu comparei a de uma mula. Hoje sofreria denúncias nas redes sociais e processos de assédio moral, mas a intenção era criar uma imagem forte. Uma imagem que ficasse fixada nos arquivos de Memória do grupo. Como funciona a Psique de Mula? A mula fica empacada por muito tempo, geralmente metade do mês, longe, muito longe das metas. Na metade do mês, a chefia soava o alarme e “incentivava” a equipe com uma chibata que combinava o medo de não atingir a meta com prêmios de última hora e uma sarabanda de “Vamos lá, P…!” que se ouviam pelos corredores, para gerar motivação e foco nos resultados.
Geralmente a meta era batida, aos quarenta e cinco do segundo tempo. Isso gerava estresse e cansaço do esforço dispendido de última hora. No mês seguinte, fazíamos reuniões para evitar a empacada da primeira quinzena, mas o que acontecia? Nova empacada na mula e novo período de apatia e procrastinação, seguida do uso da chibata chamada de Reforço Positivo e Negativo, na segunda quinzena. Felizmente havia um psiquiatra na diretoria, impedindo o processo de passar do ponto e a equipe começar a desmoronar em quadros de Burnout, que na época não eram chamados de Burnout. Mas o sistema era difícil de mudar, já que o tipo de gestão havia criado uma espécie de dependência da adrenalina da segunda metade do mês. Pensando bem, não é difícil de identificar esse modelo em nossa cultura de deixar as coisas para a última hora para que o medo e a urgência do tempo gerar um trabalho intenso e concentrado, gerando resultados com grande gasto de energia.
Lamento dizer que, depois de todos esses anos, a indústria do Discurso Motivacional continuou alimentando e perpetuando a Psique de Mula nas corporações. Observamos Filósofos Pop, Intelectuais Ungidos e Neurocientistas de Youtube pregando a Motivação, Foco, Protagonismo e Enfrentamento da Acomodação como modelo para bons resultados no trabalho. É óbvio que tem gente bem intencionada pregando essas ideias e que esses valores são quase sempre bastantes positivos para a Produtividade, mas onde estão as minhas reticências?
O Modelo da Mula prevê a necessidade de estímulos, positivos e negativos, para a equipe poder cumprir as tarefas. Isso gera resistência passiva, medo e desgaste energético. O Cérebro é um órgão como outro qualquer, e quando solicitado ao seu limite, começa a perder eficácia e a entrar em fadiga. Uma equipe com muita gente entrando em Burnout ou adoecendo de doenças psicossomáticas é um marcador de que o modelo está gerando exaustão e sendo contraproducente.
O modelo que tentamos imprimir na equipe era de trocar a falácia da Motivação e os berros de “Vamo`lá, p… !” pela criação de um novo hábito de consistência. Isso passava pela diminuição da procrastinação pela criação de um sistema com menor ruído e atrito entre a vontade de fazer e a delícia de adiar a tarefa. Havia então uma quantificação de tarefas e um incentivo de seu cumprimento de maneira rotineira reduzindo os atritos internos e externos. O foco passou a ser dirigido para trabalhar de maneira consistente todo dia, em vez de grandes correrias de final de mês. O foco era em atingir metas dia após dia. Em vez de ter grandes estrelas que centralizavam os resultados e as comissões, o foco foi em tornar a equipe mais homogênea. A consequência era de melhor ganho para todos, mantendo as estrelas com bons resultados, já que queriam continuar no estrelato.
Incentivar o Foco, Protagonismo e o Excepcional não é, em si, o grande problema. O grande problema é estabelecer metas e chibatas corporativas sem ensinar às pessoas a maneira de jogar o jogo e criar rotinas para atingir os melhores resultados. É como um técnico “boleirão” que joga as camisas para cima para cada um pegar e que grita: “Vamo´lá, cacete! Vamo’ ganhar!”.
Vontade de ganhar é importante. Saber como ganhar é mais importante ainda.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta junguiano e autor do livro “Stress o Coelho de Alice Tem Sempre Muita Pressa”