É uma falácia a propagação da ideia de que, especialmente, nestas eleições para a presidência, o país encontraria-se rachado ao meio. Com os eleitores de Lula, de um lado, e os de Bolsonaro, de outro. Afinal, Lula foi eleito com 50,9% dos votos válidos e Bolsonaro obteve 49,1%. Num primeiro momento, parece fazer sentido, mas…
Na verdade, o país encontra-se rachado em três partes, pois, novamente, houve um número significativo de eleitores que preferiram não escolher nenhum dos dois candidatos. Neste segundo turno, houve pequena queda no número de abstenções em relação ao primeiro turno, contrariando a tendência histórica de aumento no segundo turno. Mas, foram, ainda, 20,58% de abstenções, o equivalente a 32.200.558 eleitores. Além disso, foram 3.930.765 votos nulos e 1.769.678 votos em branco. No somatório, foram 37.900.366 pessoas que preferiram não escolher entre Lula e Bolsonaro. Uma população que daria um país. Eleitores que não quiseram participar da escolha entre dois candidatos que consideram igualmente ruins ao ponto de não merecerem voto.
Polarização
Acredito que 37 milhões de eleitores é um número considerável, que não pode ser desprezado. O que nos leva a conjecturar que a propalada divisão ao meio no país existe, em termos, apenas. Porém, não é tão exata, assim, quanto se fala. Não se pode afirmar que metade do eleitorado está com Lula e a outra metade está com Bolsonaro.
Entre a cruz e a caldeirinha
Entre os que preferiram não escolher candidato, encontram-se aqueles que não acreditam na política, de forma geral; mas, também, em particular, nestas eleições, há aqueles que se viram, mais uma vez, a exemplo de 2018, entre a cruz e a caldeirinha. E recusaram-se a participar de um pleito absurdamente polarizado. Com dois candidatos considerados inaceitáveis para esses eleitores, por diversas razões. Estes eleitores costumam ser chamados de “isentões” pelos demais, bem como foram muito cobrados, sendo tachados, até, de “mornos”, ”irresponsáveis”, ”alienados”. Uma interpretação sem sentido, uma vez que a decisão de não querer nenhum dos dois é um direito numa democracia, bem como não costuma vir de uma postura “morna”, ou “isenta”, pelo contrário, é resultado de repúdio e imenso desagrado em relação aos dois candidatos. Uma espécie de protesto contra o atual estado de coisas no jogo democrático.
Democracia prejudicada
Por falar em democracia, creio que não se pode dizer que o eleitorado brasileiro, em sua maioria, realmente quis a polarização entre Lula e Bolsonaro. Afinal, ambos os candidatos receberam votos motivados, também, pela mera rejeição ao adversário. A mesma situação de 2018: houve o voto meramente antipetista e o voto meramente antibolsonarista. Em outro cenário, nem Lula, nem Bolsonaro, teriam recebido todos os votos que obtiveram. O que acontece em todo o processo eleitoral e que precisa ser lembrado, é que no processo pré-eleitoral o povo não participa da definição das candidaturas.
São os partidos, a partir de articulações que envolvem inúmeros interesses e acordos, que as definem. E a briga é imensa dentro dos partidos para vencer as prévias e depois obter a aprovação e homologação da candidatura. Não é pra qualquer um… João Dória e Sérgio Moro que o digam… Enfim, é o sistema político quem dá as cartas. E o jogo é bruto. O sistema impõe as candidaturas ao povo, que lhe resta escolher entre as alternativas colocadas no tabuleiro do jogo democrático. E tudo leva a crer que a polarização imposta neste ano foi o que mais interessou ao sistema político. Ao eleitor, restou escolher entre “os que se tem pra hoje”.
A democracia, tratada desta forma pelo sistema político, termina por ficar muito prejudicada. Muitos eleitores veem-se sem opção, realmente, sentindo-se obrigados a escolher o que consideram ”menos ruim”. E pressão por uma escolha é o que não faltou. As campanhas, a imprensa, as redes sociais, os amigos, a família, as igrejas, de uma forma ou outra, exerceram uma pressão social sutil ou não pela definição por um candidato ou outro. O tenso clima eleitoral pedia por uma definição, já que se tratou de uma eleição considerada histórica, muito decisiva para os rumos da nação.
Qualificação do pleito
Tudo bem, tudo faz parte do processo democrático, inclusive, a pressão social. O voto na urna é secreto, ninguém é obrigado a votar em quem não quiser, porém, é necessário um aprimoramento da democracia a fim de que haja eleições em que o eleitor seja motivado a votar pelo candidato em si, acima de tudo, e não, apenas, para evitar que o adversário seja eleito.
Medo em pauta
Nestas eleições, mais do que nunca, o medo esteve muito em pauta. Medo do Lula, medo do Bolsonaro, medo do “comunismo”… Boas escolhas não deveriam ser motivadas por medo, mas, por pautas positivas e propositivas. Eleitores do Lula usaram, até, o argumento de que votar no petista seria uma questão além da política, mas, de humanidade. “Não sou perverso igual ao Bolsonaro e a quem o apoia”, essa foi a ideia disseminada. Para muitos, realmente tornou-se uma questão de moralidade e humanidade, não mais de propostas e de plano de governo. Também, viu-se muitos bolsonaristas alegarem que não votam em ladrão, enfatizando a questão ética e moral em jogo.
Planos de governo
A campanha, neste ano, perdeu muito em termos qualitativos em razão da polarização. Boa parte do eleitorado a tratou como uma questão de vida ou morte, de guerra do “bem contra o mal”. O mal seria o comunismo, para os bolsonaristas. Para os petistas, o mal seria o próprio Bolsonaro e sua alegada perversidade. Discussão de propostas, de planos de governo, não se viu ou se ouviu. Tudo ficou muito “preto no branco”, ”lado certo da História” e conceitos prontos, frases feitas e ideias fechadas demais.
Polarização artificial
Efeitos, infelizmente, de uma polarização artificial que foi imposta pelo sistema, onde o eleitor mal conseguiu cogitar a existência de outras cores no espectro, indo além do preto e do branco. Sequer conseguiu pensar sem a sombra do medo que o “outro“ candidato despertava. Uma polarização que foi muito fortalecida, encorpada, nas redes sociais, também, onde internautas costumam interagir apenas em suas “bolhas“ político-ideológicas impulsionadas pelos algoritmos, que nos dão sempre mais do mesmo, dificultando a respirada de novos ares, de novas ideias trocadas com pessoas que pensam diferente, a fim de que a radicalização não se fortalecesse. A democracia, certamente, tem, ainda, muito em que se aprimorar.