Crônica de uma nulidade anunciada

Crônica de uma nulidade anunciada

O processo penal brasileiro não é estranho a operações grandiosas, superjuízes, desequilíbrio entre partes e nulidades. Já vimos esse filme antes. Castelo de Areia, Satiagraha, Lava Jato são apenas alguns exemplos desde o início das Grandes Operações Policiais. Todas, cada uma a sua maneira, anuladas, independentemente do mérito, por atropelo de garantias.

Agora, uma nova novela jurídica se anuncia. Tal qual o Mensalão, o processo envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados deve ser transmitido em detalhes: provas de conhecimento público, sustentações orais televisionadas, votos lidos um a um pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas os primeiros capítulos dessa novela já levantam alertas.

Incomoda, desde logo, o fato de o caso tramitar no STF. A Corte mudou, em março, seu entendimento sobre o foro por prerrogativa de função. Desde 2018, o foro só se mantinha se o cargo fosse preservado e os fatos tivessem vínculo com o mandato. Agora, mesmo após a saída do cargo, crimes funcionais permanecem na Suprema Corte. Uma reinterpretação repentina — e conveniente.

Mais incômodo ainda é o processo estar sob julgamento de uma turma, e não do Plenário. A Súmula 721 do próprio STF é clara: compete ao Plenário, e não às turmas, julgar crimes atribuídos ao presidente da República. O argumento, aqui, é que Bolsonaro já não é presidente. Mas em 2021, o ministro Edson Fachin submeteu ao Plenário o julgamento que anulou os atos da Lava Jato contra Lula — também ex-presidente à época. A comparação é inevitável. E a conclusão, simples: decisões de 11 ministros são mais legítimas que de cinco, seja qual for o resultado proclamado.

As defesas também denunciam cerceamento de acesso a provas. Alegam não terem recebido documentos relevantes e, ao mesmo tempo, terem sido soterradas por milhares de arquivos. Não é difícil imaginar o desequilíbrio. Quem acusa seleciona o que sustenta sua tese. Mas quem defende precisa de tudo: e-mails, agendas, anotações, mensagens paralelas — inclusive as que revelem divergência em relação ao suposto plano golpista. Uma mensagem dizendo “Pessoal, não acho isso aqui uma boa ideia” pode não parecer, mas é importante elemento de defesa, num caso em que a prova é negativa, isso é, “não fazer” alguma coisa.

A desigualdade de armas é evidente. O Ministério Público teve mais de 80 dias entre o relatório final da Polícia Federal e a denúncia. As defesas, muito menos. Acelerador para uns, cronômetro correndo para outros.

E há, ainda, o tema das penas já fixadas aos réus pelos atos de 8 de janeiro. Não se tratava de um passeio no parque, como bem disse o ministro Alexandre de Moraes. Mas tampouco todos queriam um golpe de Estado. Dificuldade de individualizar condutas não pode justificar condenações genéricas. A coautoria exige um plano comum e contribuição concreta de cada agente. Nem com um milhão de batons se derrubam instituições democráticas.

O julgamento entrará para a história — disso não há dúvida. Mas a história também ensina: quando o processo se faz espetáculo, atropela garantias e desequilibra o jogo, o final é um só. Nulidade.

Enzo Fachini é advogado e mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), membro da Comissão de Direito Penal da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB/SP), sócio do FVF Advogados.

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