Cavalo Caramelo e quando a água baixar

Cavalo Caramelo e quando a água baixar

O final de abril e o começo de maio foram marcados pelo pior desastre ecológico da história do Rio Grande do Sul, com inundações, mortes e milhares de desabrigados e de pessoas ilhadas. Nosso país assistiu atônito, preso em mais uma onda de calor, com a umidade encapsulada e derramando toda a chuva no sul do país. Calor e secura aqui e um dilúvio ali. Negacionistas teclam furiosos que não foi tão ruim assim. Depois de chamar a Covid 19 de “uma gripezinha”, o que vai ser agora? Foi só uma chuva de verão?

Nossos olhos perplexos fitam as imagens de perda, os resgates improvisados, as pessoas subindo nos caminhões com filhos, gatos e cachorros no colo. Vi uma imagem numa Rede Social de um senhor se agarrando em seus cachorros resgatados, que tinham ficado para trás. Ele, aos prantos, eu, com os olhos gotejando. E a imagem de um cavalo ilhado, imóvel, encima de um telhado percorreu o mundo, ficou doendo nas telas. Alguns dias parado, imóvel, encima de um espaço exíguo. Essa imagem mobilizou influencers e internautas para ver o que fazer para tirar o “Caramelo”, assim nomeado pelas redes, daquela situação. Uma equipe de veterinários e bombeiros foram em vários botes para salvar Caramelo. Ele foi sedado lá no telhado mesmo, apesar do risco do mesmo ceder, não cedeu, e o bicho foi colocado como um bebê no bote que finalmente o tirou dali, depois de quatro dias e meio de resistência. Lágrimas, aplausos. E alívio. Que alívio!

Assisti uma aula de um psiquiatra indiano, Dr. Suresh Bada Math, em que ele dividiu a resposta das pessoas, em situação de Desastre Natural, em quatro fases: Fases Heróica, Lua de Mel, Desilusão e Recuperação.

Na fase inicial, ligamos em nosso Cérebro o modo de sobrevivência. É uma fase que o objetivo é reduzir ao máximo os danos e salvar vidas. Bombeiros e militares se revezam para resgatar as pessoas, tratar os feridos, impedir a propagação de infecções. Voluntários aparecem de todos os lugares. Depois vem a fase que ele estranhamente referiu como “Lua de Mel”, o que eu acho que é para causar essa estranheza mesmo: chegam donativos de todo o país, remadores olímpicos e surfistas vão resgatar as pessoas, autoridades prometem mundos e fundos, abrigos, roupas, auxílio médico, tudo brota como mágica. Estamos vendo essa fase agora. Isso é bom? Isso é ótimo. Salvou o Caramelo da morte por fadiga muscular e desidratação. Mas, para a Psiquiatria, tem um porém, quando as águas baixarem. Aí é que vem a fase da queda no Real. E a desilusão.

Quando passamos por uma perda, por exemplo, de um ente querido, na fase inicial, a Heróica, parece que somos inundados por adrenalina, para cuidar de todos os detalhes, proteger os mais vulneráveis, consolar o sofrimento. Nas primeiras semanas após a perda, vem as ligações, as visitas, o amparo de amigos, parentes, colegas do dia a dia, para animar, estimular e acolher a pessoa que passa por aquela perda. Mas o tempo passa, e a água, abaixa. E aí que começamos a dimensionar o tamanho do estrago. As pessoas retomam suas vidas. Os telefonemas escasseiam. Nessa hora, em que parece que a vida vai continuar, é aí que um psiquiatra vai colocar seus olhos e ouvidos atentos: é a fase da grande tristeza. A fase em que “cai a ficha”. E o que aparece? Revivências dos traumas, revolta, angústia, uma imensa sensação de perda e vazio, o que pode desembocar em vários transtornos psiquiátricos. E, veja só, é nessa hora, quando a poeira e a água do Guaíba baixar, que a mídia vai embora, os blogueiros vão falar de outra coisa e as pessoas vão ver o que sobrou depois do dilúvio. Nessa fase de desalento, estranhamente, costuma ser a fase em que há a maior solidão e confronto com a dor. Acaba o oba-oba da mídia e começa o trabalho de enxada da reconstrução, onde não pode faltar a escuta, o apoio, os planos de reconstrução: isso vai ser tarefa também da equipe de Saúde Mental. Esse é o paradoxo: quando a água refluir, a comoção da opinião pública se abrandar, nessa hora que os enlutados, os órfãos e os caramelos vão precisar de mais ajuda. De mais investimento.

Uma lembrança para os queridos leitores, aí do outro lado: isso vale para todo processo de luto: quando todo mundo acha que ele está melhorando, é justamente aí que a tristeza fica pior. E precisa ser acolhida. Por todos.

Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”

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