Na última semana, o caso “Tio Paulo”, idoso levado morto pela sobrinha e cuidadora “Érica” a uma agência bancária, no Rio, para assinar um empréstimo, tem gerado um misto de comoção e indignação popular. O público tem se dividido apaixonadamente entre os que condenam Érica e os que a defendem, acreditando em sua inocência. Contudo, antes do julgamento pelo Poder Judiciário, já há quem demonstre ter “certeza“ de que a cuidadora agiu de má fé, supostamente ciente de que estaria tentando usar um cadáver para assinar um empréstimo. No “tribunal da internet” é comum todos contarem com “certezas”, muitas vezes, bastante arbitrárias, unicamente baseadas em convicções pessoais.
Delegado “convicto”
Porém, o mais absurdo é a postura do delegado do caso, que afirma “ter convicção” de que Érica sabia que “tio Paulo” estava morto quando o levou ao banco. Ora, então, quer dizer que temos um delegado que atropela suas funções e antecipa-se ao trabalho do juiz?
Prisão arbitrária
Ainda, causa indignação a prisão preventiva da cuidadora, não revogada até o fechamento desta edição, como se Érica representasse um risco à sociedade ou pudesse obstruir a justiça.
Motorista do Porsche
Por outro lado, temos o caso do motorista do Porsche, em São Paulo, que matou um motorista de Uber, e que está solto, mesmo tendo dirigido alcoolizado a mais de 150 km/hora. Nas redes sociais, essa diferenciação de tratamento da Justiça entre ambos tem gerado muita indignação. Nenhuma novidade no Brasil, enfim. O tratamento do Poder Judiciário costuma ser “vip” a quem tem dinheiro e influência. Tanto que não faltam comentários de internautas ironizando essa diferença. “O único crime que Érica cometeu foi estar dirigindo uma cadeira de rodas, ao invés de um Porsche”, costumam comparar os internautas.
Transtornos psiquiátricos
Possivelmente, após a entrevista da família de Érica ao Fantástico, é possível que muitos que a condenavam afirmando “certeza” de que ela sabia que o idoso estaria morto, tenham mudado de opinião. A família apresentou laudos médicos que demonstram que realmente Érica tem sérios problemas psiquiátricos, inclusive, com recomendação médica de internação. A cuidadora é dependente de medicamentos para dormir, apresenta ideação suicida e alucinações auditivas. Provavelmente, Érica apresente um quadro de esquizofrenia, o que explicaria sua incapacidade em perceber, ou, mesmo, desconfiar, que “tio Paulo” já estava morto quando chegou a agência bancária. E vale atentarmos para o fato de que os próprios funcionários do banco que interagiram com Érica também tiveram dificuldades em perceber que o idoso já estava morto. Considerando a hipótese de que a cuidadora tenha fingido não perceber a morte do homem, como conseguiria pensar na possibilidade de um morto assinar alguma coisa? É muito difícil acreditar em má fé numa situação como essa… A grande possibilidade é a de que Érica realmente não estava de posse de suas faculdades mentais, entrando em negação da realidade, diante da ausência de sinais vitais do idoso…
Explosão de memes
O caso “Tio Paulo” ganhou repercussão na imprensa de forma inesperada. A notícia ganhou repercussão internacional. Por um lado, é compreensível devido a situação bizarra envolvendo uma pessoa morta levada a uma agência bancária para assinar um pedido de empréstimo. Triste e trágico, porém, com uma dimensão de bizarrice que não constrangeu aos criadores de memes nas redes sociais. Foram inúmeros memes que viralizaram. Enquanto muitos riam dos memes, outros condenavam quem ria…
“Tribunal da internet”
Acredito que o mal do brasileiro seja rir de tudo, principalmente, das tristezas e tragédias. Proibir o riso, nestes tempos de censura obtusa, seria uma péssima ideia. Assim como censurar o “tribunal da internet”.
Realidade dos idosos e cuidadores
Mas, seria muito mais interessante se, para além do riso, fôssemos capazes de refletir sobre trágicas histórias como a de “tio Paulo” e Érica. Olhar com mais carinho e atenção a triste realidade de muitos idosos doentes e abandonados por suas famílias. Bem como pensar nas condições de inúmeros cuidadores de idosos que estão trabalhando de forma extremamente precária, fazendo o que podem, o que conseguem, com muito poucos recursos e estrutura, inclusive, emocional e mental.
Omissão do poder público
Quantos idosos e seus respectivos cuidadores não estariam em situação semelhante? Além da omissão e negligência de familiares próximos, há omissão do poder público. Temos, nesses casos semelhantes ao do “tio Paulo”, um imenso desafio a área de assistência social de estados, municípios e do governo federal. Esta trágica história tem muito mais a ensinar aos brasileiros do que desenvolver a criatividade em memes. Escancara os “podres” do nosso Poder Judiciário que não se restringem ao STF e, ainda, os graves problemas sociais da população idosa em situação de vulnerabilidade, bem como a de seus cuidadores que podem encontrar-se em igual vulnerabilidade.
Indignação seletiva
Estranhamente, a imprensa não deu a mesma repercussão ao caso de um jovem que matou a mãe, na Bahia, para sacar dinheiro em seu nome por meio de biometria. Este, sim, obviamente, agiu de má fé. Cortou a mão da mãe morta para levá-la ao caixa eletrônico e, assim, sacar o dinheiro com o uso da biometria. Fim de mundo. Mas, ainda continuam com o foco em Érica e “Tio Paulo”…