Auscwitzel?

por Gaudêncio Torquato

Cena da semana: um saltitante e sorridente governador, dando murros no ar sobre a ponte Rio-Niterói, comemorando o abate do jovem Willian Augusto da Silva, de 20 anos, sequestrador de um ônibus com 39 passageiros, por um sniper escondido em cima de um caminhão de bombeiros. O ex-juiz Wilson Witzel, agora na condição de mandatário-mor do Rio de Janeiro, vibrava com a tragédia que chegara ao fim, convencido de que a orientação que deu para a segurança pública é correta: “mirar na cabecinha e… fogo… matar o bandido! Para não errar”.

Deu certo. Esgotados todos os recursos para a dissuasão do sequestrador, a alternativa que restava era o tiro. No caso, seis tiros. A imagem de sua Excelência, esbanjando alegria e correndo na ponte, ganhou espaços midiáticos pela extravagância da performance. Puro marketing. Por mais que se justifique a ação policial que culminou com o episódio, comemorar a morte de um sequestrador é gesto inapropriado para quem devia conservar (ou não?) traços da nobre missão de administrar a justiça. Witzel deu demonstração que está mais para Rambo do que para ex-juiz.

A estampa de violência que emoldura sua figura faz com que um dos maiores juristas do país, o desembargador e professor de Direito Penal Walter Maierovitch, lembre o horror de Auschwitz, onde os nazistas mataram 1,3 milhão de pessoas em seu maior campo de concentração, dentre as quais cerca de 1 milhão de homens, mulheres e crianças judias. Pergunta ele: o populista Witzel ou Auscwitzel?

O Rio de Janeiro mais parece uma praça de guerra. Os dados dão conta de que no primeiro trimestre deste ano, 434 pessoas foram mortas por intervenção policial. Média de sete óbitos por dia. Foi o maior número desde 1998. O fato é que a política de segurança pública, nesses estranhos tempos, se guia pelo mote: “matar ou matar. Bandido bom é bandido morto”. A doutrina, encampada pelo presidente da República, simpático a medidas como liberação do porte e compra de armas, desce como gigantesca cortina de sangue sobre o território, expandindo milícias, intensificando as agências funerárias, abrindo portões dos cemitérios.

Foram 65.602 homicídios no ano retrasado, aumento de 4,2% em relação ao ano anterior e, o mais preocupante, um número recorde que equivale a 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes – mais do dobro, por exemplo, da taxa de homicídios do Iraque, segundo estatísticas mais recentes da OMS, a Organização Mundial da Saúde. A entidade considera epidêmicas taxas de homicídio superiores a 10 a cada 100 mil habitantes.

De cinco doentes que baixam nos hospitais brasileiros, pelo menos um é vítima da “guerra civil” que mata três vezes mais que a violência nos Estados Unidos e mais gente que os mortos em conflitos étnicos. Em 30 anos, o número de vítimas fatais chega a mais de um milhão, bem mais que os 750 mil vitimados durante todo o período colonial da guerra de Angola.

Nas prisões-depósito, milhares de presos germinam novas formas de violência, enquanto as gavetas se entopem com milhares de mandados de prisão, envolvendo, no mínimo, outros milhares de bandidos soltos nas ruas, enquanto rebeliões se expandem em penitenciárias.

A brutalidade jorra em proporção geométrica e as paliativas soluções governamentais – melhoria e ampliação do sistema penitenciário, reforço e reaparelhamento das polícias – estão longe de um crescimento em proporção aritmética. Os cinturões metropolitanos, já saturados de lixões que ofertam um banquete pantagruélico para urubus, crianças e mães famintas, são também palco para a exibição de corpos chacinados em decomposição.

O Brasil, é triste, está se tornando um dos maiores assassinos da humanidade. Pior: a violência, de tão desalmada, aumenta a insegurança.

Sem ânimo, emoções envenenadas pelo vírus da angústia, os cidadãos entram no limbo catatônico. E assim o mais rico país do mundo em recursos biológicos está se transformando no mais fértil país do mundo em registros necrológicos.

Nessa paisagem desoladora, emerge a figura saltitante do governador exibindo a estética desses tempos macabros. E onde está a prudência do juiz que Bacon tão bem descreveu? “Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspetos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza”.

Gaudêncio Torquato
Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Twitter@gaudtorquato

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