“Alguma poesia”: Drummond e o Brasil de hoje

“Alguma poesia”: Drummond e o Brasil de hoje

A grandeza da produção literária de Carlos Drummond de Andrade é de tal magnitude que permite, além do deleite intelectual, a explicação das diversas faces do país em variados momentos históricos, muito além do momento em que determinado livro do autor mineiro tenha sido escrito. “Alguma poesia”, obra de 1930, permite refletir, com base em alguns de seus poemas, sobre a complexa situação vivenciada atualmente pela sociedade brasileira.

“Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros. / Mas eles acordam e brigam de novo” (poema ‘Outubro 1930’). O clima de animosidade entre os compatriotas tem crescido há vários anos no Brasil e nada indica que vá arrefecer até o pleito presidencial de 2022. Ao contrário, parece cada vez mais evidente a impossibilidade de diálogo entre as correntes que expressam diversas visões de mundo socialmente. Viabilizar algum campo de convergência para a construção de um projeto de reestruturação do país é o grande desafio do próximo presidente da República.

“Eu estava sonhando… / E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar” (poema ‘Sentimental’). A falta de esperança é característica marcante do brasileiro em 2021. Há pouco mais de quinze anos, aliás, quando a onda de escândalos de corrupção sistemática começou a ser exposta pela imprensa, de forma recorrente, em governos de esquerda e de direita, vislumbrar um futuro com melhores condições de vida e um ambiente público mais decente, passou a demandar imaginação mais fértil, beirando a ingenuidade.

“Ora, afinal a vida é um bruto romance / e nós vivemos folhetins sem o saber” (poema ‘Sweet home’). O caráter novelesco da realidade brasileira é mais surpreendente que a ficção. Entre a construção e a destruição da respectiva imagem como herói ou vilão, três figuras aparecem em cena: Lula, Bolsonaro e Moro. Ainda que outros atores possam surgir no enredo e assumir eventual protagonismo, as paixões do eleitorado resumem-se atualmente a acompanhar a trajetória das personagens mencionadas e o desenrolar dos capítulos da história folhetinesca que desaguará nas eleições de 2022.

“Um novo, claro Brasil / surge, indeciso, da pólvora. / Meu Deus, tomai conta de nós” (poema ‘Outubro 1930’). Embora o horizonte pareça nublado, dada a tempestade que tomou conta da vida social nos últimos anos e a promessa de chuvas e trovoadas no curto prazo, sempre há a busca de uma nesga de luz no futuro da nação. Para que o firmamento surja de modo resplandecente a médio e longo prazos, porém, é necessário que a sociedade civil, por meio das instituições democráticas, redefina as premissas que constituem os fundamentos do país, por meio de retórica não divisiva e projetos que incluam os cidadãos olhando para o mesmo ponto. A postura maniqueísta adotada há tempos no campo político, distinguindo a comunidade brasileira entre ‘nós’ e ‘eles’, tem intoxicado a convivência e impossibilitado qualquer visão nacional.

A qualidade artística da obra de Drummond transformou-a em clássico da literatura nacional. Tal atributo, por definição, faz com que as palavras do autor mineiro toquem a sensibilidade de qualquer indivíduo, independentemente do tempo e do espaço em que o leitor esteja. É o que se aplica ao caso: somente a genialidade do poeta de Itabira, mais de oitenta anos depois de manifestada, é capaz de levar alguma poesia ao duro cotidiano brasileiro de 2021.

Elton Duarte Batalha é professor de Direito, pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.

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