Há cento e noventa e um anos morria Líbero Badaró, jornalista vitimado em um atentado no centro da cidade de São Paulo. Tal fato está repleto de simbolismo, pois traz à baila alguns aspectos que ainda marcam a sociedade brasileira, como a impunidade e o risco à liberdade de expressão, esteja esta vinculada ou não à liberdade de imprensa.
Giovanni Batista Libero Badarò (ou Líbero Badaró, na grafia aportuguesada) nasceu na Itália e veio ao Brasil, como tantos outros imigrantes que ajudaram a compor a sociedade brasileira. De caráter marcadamente liberal, ele combatia aquilo que considerava autoritário, o que na política nacional significava contrapor-se à conduta de Dom Pedro I na época, algo que fazia sobretudo pela publicação de artigos no jornal ‘O Observador Constitucional’, que fundou em São Paulo. Evidentemente, a postura de Líbero granjeou-lhe inimigos, o que ficou claro na noite de 20 de novembro de 1831, quando sofreu atentado com arma de fogo no momento em que chegava em sua casa, localizada na Rua São José (a qual, posteriormente, seria rebatizada com o nome da vítima), morrendo algumas horas depois, já em 21 de novembro.
O assassinato de Líbero Badaró é representativo da impunidade que reina no Brasil historicamente. O atirador (Henrique Stock) e o ouvidor, figura de proa do campo jurídico de então, foram inocentados em julgamento estranhamente realizado no Rio de Janeiro: o primeiro conseguiu livrar-se da prisão ao ter seu recurso julgado em terras cariocas, após condenação no juízo paulistano; o segundo foi levado à julgamento no Rio, para protegê-lo da fúria popular e para fazer valer o foro privilegiado que gozava em decorrência do cargo por ele ocupado. Não é preciso aprofundamento teórico para notar que a ausência de punição presente no país hodiernamente tem raízes profundas na estrutura social. As instituições acabam por refletir a cultura nacional de desprezo à impessoalidade na aplicação de regras nos mais diversos campos da vida comunitária. Em uma sociedade relacional como a brasileira, importa, sobretudo, o sujeito que está sendo julgado e não o objeto do julgamento.
O segundo aspecto presente no caso da morte de Badaró que deve ser observado com cuidado atualmente é a questão da liberdade de expressão. É evidente que nenhum direito é absoluto, algo aplicável, portanto, à liberdade mencionada e a seu corolário, a liberdade de imprensa. Isto não quer dizer, entretanto, que eventuais abusos autorizem o cerceamento das liberdades, sendo cabível aos que se julgarem ofendidos a busca de reparação na instituição competente (papel exercido pelo Judiciário em um Estado democrático de direito). É importante não confundir a qualidade do trabalho dos componentes de quaisquer instituições, naturalmente sujeita a críticas (realizadas dentro dos limites legais), e a necessidade de tais estruturas institucionais, as quais são indispensáveis ao funcionamento da democracia. Ressaltar a importância da liberdade de expressão e, especialmente, da liberdade de imprensa, é fundamental em tempos obscuros de populismo autoritário (à esquerda e à direita) em vários países do mundo. Propostas como a chamada regulação social da mídia, portanto, devem ser analisadas com muita cautela pela sociedade, pois pode trazer, em um invólucro de suposta democratização de opiniões, a semente de uma visão de mundo hegemônica, apta a sufocar a natural divergência que deve vicejar no campo democrático.
Líbero Badaró teria dito, após o atentado, ao perceber que não escaparia daquela situação com vida, “morre um liberal, mas não morre a liberdade”. A voz do jornalista ainda ecoa profundamente na alma brasileira quase duzentos anos após tal frase ser proferida. Cabe à sociedade manter-se vigilante e contrapor-se a qualquer conduta que avilte a liberdade de se expressar e de exercer a imprensa de forma independente. Sem isso, a democracia não passa de mero simulacro.
Elton Duarte Batalha é professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.