Um evento de destruição praticado na Alemanha por algumas horas entre a noite do dia 9 de novembro de 1938 e o dia seguinte, envolvendo diversos tipos de violência contra os judeus, deixou marcas indeléveis na humanidade. Mesmo já decorridos oitenta e três anos desde a ocorrência do fato, é necessário notar que algumas das características que permitiram a consumação daquele acontecimento bárbaro podem ser observadas em sociedades atuais, incluindo, talvez, a realidade brasileira.
Em 7 de novembro de 1938, Herschel Grynszpan atira contra o diplomata Ernst vom Rath, na embaixada alemã em Paris, após ter recebido uma carta dos pais com a informação de que estavam sendo deportados da Alemanha para a Polônia, decorrência do ambiente antissemita que tomava conta daquele país na época. A morte de Rath dias depois, em 9 de novembro, foi utilizada como pretexto pelo governo de Hitler para induzir uma série de ataques contra os judeus em território germânico, iniciada na mesma noite e encerrada no dia seguinte, tudo com a conivência da polícia, instruída a não interferir na violência que seria praticada na sequência. O termo ‘noite dos cristais’, aliás, é referência à quantidade de vidros que ficaram espalhados pelas cidades após a destruição e saques das lojas e sinagogas.
É relevante observar que o fato ocorrido em Paris foi mero pretexto para os ataques iniciados em 9 de novembro, pois o ódio contra os judeus já estava disseminado pela sociedade, inclusive por meio do ensino, conforme aponta Richard J. Evans na obra Terceiro Reich no poder: “As crianças (…) com frequência foram ensinadas na escola a considerar os judeus criminosos e não se arrependem de saquear suas propriedades” (p. 659). A demonização do outro, ainda que de forma não institucionalizada, é algo estranho à vivência democrática. Em vários países do mundo, a polarização social em decorrência de fatores como a política, tem causado a fratura da convivência harmônica, colocando em risco a consecução do terreno comum para a discussão de questões relativas ao bem público.
Outro aspecto relevante notado na sociedade alemã da época que desembocou na noite dos cristais e deveria servir de ponto a ser observado em qualquer país é a influência que a linguagem utilizada exerce sobre a sociedade. Desvirtuar o significado de alguns termos pode servir para a normalização do absurdo.
Victor Klemperer exemplifica na obra LTI – a linguagem do Terceiro Reich algo ocorrido com o termo fanático naquele momento histórico: “se, por longo tempo, alguém emprega o termo ‘fanático’ no lugar de ‘heroico’ e ‘virtuoso’, ele acaba acreditando que um ‘fanático’ é mesmo um herói virtuoso e que sem fanatismo não é possível ser herói” (p. 14-15). Ao analisar tal fato ocorrido na comunidade germânica do período estudado, fica evidente a importância de refletir sobre o excesso de adjetivação no tratamento dispensado entre pessoas à direita e à esquerda no espectro político brasileiro. Palavras importam e são aptas a influenciar pensamentos e atos, inclusive podendo levar qualquer sociedade a trilhar um caminho sombrio.
A ‘noite dos cristais’ teve, como evento histórico, duração limitada no tempo. Como ocorrência simbólica, porém, deixou lições eternas sobre os elementos que devem ser evitados por quaisquer sociedades que buscam a construção de um ambiente no qual se respeita a dignidade humana. Cabe ao Brasil (assim como a outros países) saber ler os sinais da realidade à luz dos ensinamentos da história.
Elton Duarte Batalha é professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.