O planeta está assustado com a pandemia do Covid-19. Países grandes e pequenos, pobres e ricos, estendem os olhos aos laboratórios científicos na ânsia de receber respostas de vacinas que entram na fase 3 do teste. Mas, na paisagem das nações, uma questão se impõe: que ajustes poderão ser feitos após a crise sanitária nos sistemas democráticos? Haverá evolução ou as regras continuarão as mesmas? O tema merece reflexão.
Comecemos com uma introdução histórica. A democracia de Aristóteles tem mudado de feição. O filósofo concebia a política como a responsabilidade do cidadão em relação à polis. Os habitantes submetiam-se a uma missão, não entendiam a política como profissão. Na Ágora, praça central de Atenas, a democracia nascia sob o clamor das demandas populares. Plantava-se a árvore da democracia direta.
Ao correr dos tempos, o Estado substituiu o absolutismo dos monarcas pelo espaço da República. O poder imperial cedeu lugar ao poder popular. Um poder arraigado no Estado moderno pelo ideário da Revolução Francesa, cujo escopo abrigava o governo representativo, as liberdades, os direitos e os deveres dos cidadãos nos campos da expressão, produção e comércio.
O conceito firmou-se com o axioma de Abraham Lincoln: “a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo”. Mas ciclos de crise se sucediam abalando os fundamentos democráticos, inclusive em Nações avançadas, corroendo as frentes da representação. Os três Poderes, arquitetados pelo barão de Montesquieu como forma de se obter harmonia e independência entre eles, passaram a vivenciar tensões. Certa interpretação de tarefas começou a azedar as relações entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Desvios se acentuavam, a ponto de o chamado presidencialismo de coalizão ser frequentemente acusado de presidencialismo de cunho imperial, como é o nosso caso, em razão de o Poder Executivo usar o “poder da caneta” para negociar a governabilidade.
Sob outro prisma, os conjuntos representativos desviaram-se de seus papéis, a ponto de Norberto Bobbio ter dado forte puxão de orelhas ao acentuar que a democracia não tem cumprido suas promessas, entre as quais a educação para a cidadania, a transparência, o acesso de todos à justiça e o combate ao poder invisível.
Dito isto, ingressemos na atualidade. Os problemas emergem em escala geométrica, corroendo as áreas da saúde (veja-se atual pandemia que devasta nações), da educação, da mobilidade urbana, da segurança pública, da habitação, do saneamento básico, entre outras. No campo da sustentabilidade ambiental, a irresponsabilidade campeia, rasgando a terra, queimando florestas, destruindo riquezas naturais. Países perdem o bonde da história ao não acompanhar os avanços civilizatórios. Conflitos étnicos e religiosos explodem em todos os quadrantes. O comércio e o poder competitivo das potências intensificam querelas, como este entre a China e os EUA, uma espécie de segunda guerra fria. Até consulados são fechados.
Esse é o panorama que acolhe a pandemia do Covid-19. O que acontecerá na textura democrática após a crise? A resposta tem a ver com o estado d’alma sociedade mundial. Já vem de algum tempo um sentimento de contrariedade dos cidadãos em relação aos políticos. Tal contrariedade abriga rancores, ódio, indignação, a denotar desprezo pelos governantes. O sentimento tem se propagado nos últimos anos, como se observa nos conflitos que cercaram a primavera árabe, em 2010, abrangendo Tunísia, com a derrubada do ditador, e se estendendo pela Líbia, Egito, Argélia, Iêmen, Marrocos, Bahrein, Síria, Jordânia e Omã.
Em finais de 2011, um movimento chamado Occupy London, ao lado da catedral St Paul, chamava a atenção por reunir uma multidão numa das capitais mais democráticas do mundo. Pouco tempo depois, em 2012, foi a vez de Washington ver instalado o Occupy Wall Street, que pedia mudanças no sistema financeiro. Culpavam-se os governantes por problemas, como poluição, tratamento cruel contra animais, desigualdade social. No Brasil, tivemos as grandes manifestações de junho de 2013, empuxo do impeachment da presidente Dilma.
O fato é que, de uns anos para cá, a sociedade passou a ter participação mais ativa na política. Nos horizontes, vislumbra-se um poder centrípeto – das margens para o centro – revigorando as estacas da democracia participativa. Esta é, portanto, uma tendência a ganhar força nos tempos pós-pandemia.
Novos polos de poder se multiplicam aqui e alhures, usando estruturas de entidades intermediárias, como associações, sindicatos, federações, núcleos, setores, movimentos. Infere-se, assim, que o poder político tende a ser mais descentralizado, fortalecendo a ideia de um sistema compartilhado com o povo.
Já a nossa democracia atravessa gargalos: a pobreza educacional das massas; a perversa disparidade de renda entre classes; o sistema político resistente às mudanças; um governo ortodoxo e a manutenção de mazelas históricas.