As crises intermitentes que assolam as democracias, e que propiciam caminhadas de países à direita e à esquerda, cada qual tentando experimentar receitas liberais ou socializantes, a depender das circunstâncias, coloca o populismo no altar das venerações. E estabelecem um foro de debates a respeito do fenômeno da globalização e da ascensão da tecnocracia ao centro do poder político, abrindo a velha questão: é melhor colocar na máquina governamental técnicos no lugar de políticos ou procurar acender uma vela a deus e outra ao diabo?
O fato é que grupos de diversos matizes passam a agir como exércitos, tomando as ruas, exigindo a saída de governantes açoitados pela crise financeira e defendendo a entrada na cena de novos figurantes. O status quo é jogado no colo de “elites” identificadas com os responsáveis pela adoção de modelos ultrapassados.
Veja-se o caso de Lula. Deve o protagonista vestir o figurino de esquerda ou governar com representantes do centrão, usando os moldes do modelão tradicional? Fugir da sinuca de bico seria sair pela porta populista ou dar uma no cravo, outra na ferradura? Enquanto as perguntas não são respondidas, o governo parece um ente sem rumo.
Nas vizinhanças, as administrações também buscam um modelo para administrar a crise econômica que ameaça corroer os cordões dos regimes. A alta inflação da Argentina é a segunda maior entre as principais economias do mundo. No Chile, o presidente Boric, com um ano de governo, padece da pior crise de popularidade na história do país.
Na Europa, espraia-se uma agitação que clama por mudanças drásticas, a par das aflições vividas pelas populações submetidas aos rigores da guerra entre Rússia e Ucrânia. Grupos radicais esquentam a polêmica. Nos EUA e em outras praças, está em jogo o próprio equilíbrio do sistema democrático, sob a ameaça de uma nova Guerra Fria, cujos protagonistas – EUA, Rússia e China – inauguram uma temporada de estocadas recíprocas.
Noutras regiões, o ressentimento cai sobre a perda das identidades nacionais. Os governos seriam controlados pelo mandatário-mor do planeta, o capital internacional. Parcelas expressivas das populações europeias se queixam da erosão de suas fronteiras, enquanto um ex-membro da União Europeia, o Reino Unido, tenta arrefecer os impactos do Brexit. As culturas regionais sinalizam o esgarçamento da teia de valores que formam o caráter de seus povos.
As assimetrias, como agora se mostram, são escancaradas. O ordenamento do império financeiro – inspirado na proteção dos cofres e no fortalecimento dos PIBs nacionais – acaba tapando os olhos para o conforto social, ainda que as equações produzidas pelos formuladores de plantão tentem demonstrar relação de causa e efeito, ou seja, a estratégia de defender o Tesouro da Nação acaba sendo a chave para abrir as portas do bem-estar geral.
A receita brasileira para enfrentar a crise, segundo se depreende da visão do presidente Lula, é expandir o acesso da população ao crédito e consumo. Meta que esbarra no compromisso de uma política regrada pelo teto de gastos e crescimento do PIB, agora bravamente defendida pelo ministro Fernando Haddad.
Dito isto, analisemos outro ator no palco das democracias contemporâneas: o tecnocrata. Oportuno lembrar que não há mais no planeta brilhantes estrelas da política. O painel locupleta-se de figurantes sem o glamour de líderes que marcaram presença na História. Quem se lembra da sabedoria e do tino de figuras portentosas como De Gaulle, Churchill, Margaret Thatcher ou Willy Brandt? As nações dispõem hoje de quadros funcionais de limitado ciclo de vida política. Os conflitos do passado, cujo foco era a geopolítica e a expansão de domínios (que ainda se fazem presentes na feição de perfis como Vladimir Putin), cedem lugar às lutas contra o dragão que devasta as finanças e corrói os cofres. É natural, pois, que o perfil do momento saia dos salões da tecnocracia.
O tecnocrata faz mal à democracia? A pergunta está no ar desde a queda do Muro de Berlim, no vácuo deixado pelo desvanecimento das ideologias e pela pasteurização partidária. De lá para cá, governos esvaziaram seus compartimentos doutrinários, preenchendo-os com quadros burocráticos e apetrechos técnicos para obter eficácia. Inaugurava-se o ciclo que Maurice Duverger cognomina de “tecnodemocracia”, que sucede à democracia liberal. Seus eixos se apoiam em organizações complexas e racionais e, hoje mais que nunca, levam em conta a gangorra dos capitais financeiros mundiais. A política deixou de ser uma unidade autônoma, porquanto passou a depender de mais duas hierarquias: a alta administração do Estado e os negócios.
Esse é o feitio das modernas democracias. É essa modelagem que explica a mobilização das massas em quadrantes diferentes do planeta. Busca-se um salvador da pátria, seja ele socialista, populista, liberal, conservador de direita, tecnocrata ou intelectual. E se ele não aparecer? Então ganha vez e voz um dos lemas dos ditadores: quando nada mais se apresenta, o trunfo é paus.