Mente intencional

Lembro de uma passagem de um livro Zen-Budista em que um atarefado rapaz se queixa ao seu amigo, que por um acaso é um mestre Zen, que, como homem moderno, ajudava a esposa em suas tarefas domésticas. A pior parte para ele era lavar a louça. Não eram pessoas de posses, então não usavam a máquina de lavar louça no seu dia a dia, e aí sobrava para ele lavar a louça, já que não sabia cozinhar. O mestre deu uma daquelas perguntas zen que parecem muito simples mas que deixam em suspenso nossa capacidade de gerar falsas questões: sugeriu que ele lavasse a louça “por lavar”. O que? Como? Isso que você ouviu. Lave pelo simples ato de lavar. Sem olhar o cronômetro. Sem xingar a água fria. Sem tentar bater nenhum recorde. Lavar por lavar. Depois de alguns dias o homem escreveu um artigo no jornal da comunidade que o “lavar por lavar” tinha transformado uma tarefa outrora chata numa atividade relaxante e quase prazerosa.

Estava em outro momento vendo um vídeo de Mooji, um guru cujos vídeos muito me ajudaram na pandemia: estava terminando uma prédica e uma moça magrinha e pálida pede a palavra e diz algo que muita gente diz quando começa a meditar: ela não estava se sentindo mais leve, nem conseguia pacificar a sua mente, não conseguia vencer os pensamentos, e começa a chorar copiosamente. Mooji não fez cara de monge nem de Ser iluminado. Quase impaciente, ele começa a convidar a menina e colocar tudo para fora: a paz, a iluminação, o estado de graça, a meditação e colocar para fora até ele mesmo e as pessoas que estavam naquela sala. Colocou tudo para fora? Acho que sim. O que restou? As lágrimas viraram uma gargalhada. O que restou foi meu Ser, ela falou.

Vivemos numa época de conforto e de recursos mal distribuídos, mas recursos que permitem a grande parte da população ter alimento, abrigo, roupas para vestir. Com tudo isso, nossos índices de infelicidade, depressão e suicídios nunca foram tão elevados.

Nas duas pequenas passagens colocadas acima, dá para localizar um grande vilão de nossa Infelicidade coletiva: a Mente Intencional.

Lavar a louça odiando a tarefa para ser um marido moderno só serve para quebrar alguns pratos e copos. A menina tentar meditar para atingir a paz interior só faz os pensamentos se multiplicarem até virar um turbilhão de dores, de culpa e de tudo que é contrário à uma prática meditativa.

Fazemos quase tudo visando algo, e isto está ok e move o mundo. Amanhã vou sair para trabalhar porque preciso viver e pagar minhas contas. Ao acordar, vou fazer uma meditação que me prepare para o dia e visualizar bons atendimentos e pacientes melhorando, mas, como Mooji ensinou para a menina, em algum momento vou precisar jogar isso tudo fora da minha cabeça: o certo, o errado, os objetivos, as tarefas. Se tudo der certo, vou estar entregue a guiar por guiar, escrever para escrever e atender para atender, sem o peso esmagador de nossas expectativas. Viu, achei outro vilão, pior que a Mente Intencional: é a Fábrica de Expectativas que fazem que a gente espere sempre um determinado ganho e, quando ele não vem, choramos como a menina na frente do guru.

Nesse momento, quase ouço você, do outro lado da tela, perguntando: mas como faço isso? Fazendo. Treinando. Rindo das metas e das expectativas. Como uma criança encantada correndo atrás de bolhas de sabão.

Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”

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