Ainda fico emocionado quando vejo uma das cenas culminantes do filme de Clint Eastwood, “Invictus”, de 2009. Matt Damon faz o papel de François Pienaar, capitão do time de Rugby da África do Sul. O time está reunido em círculo para combinar a jogada que vai decidir o jogo. François aponta para as arquibancadas, cantando em uma só voz e pergunta: “Vocês estão ouvindo isso? Esse é seu país! Esse é o nosso destino! Vamos buscá-lo!”. Os caras saem gritando, enlouquecidos, para ganhar de um time até hoje imbatível, o All Blacks da Nova Zelândia e ganharem o título mundial. O que não parecia, ERA impossível. Mas para Nelson Mandela, nada era impossível.
Invictus parece um filme sobre um esporte não muito popular no Brasil, o Rugby. Eu cheguei a jogar Rugby no torneio Interclasses, na faculdade de Medicina. O jogo me ajudou a desenvolver muito minha velocidade: nunca corri tanto para ficar longe daquela bola oval e daqueles brutamontes. Se a bola passava perto, eu dava uma bicuda para o lado que estava virado. E saia correndo na direção contrária. Não fui mais convocado depois dessa atuação. Mas, voltando para o filme: Invictus é muito mais do que um filme sobre esporte. Ele conta a transição na África do Sul durante o primeiro ano de governo de Nelson Mandela, depois de ter sido libertado da prisão, onde ficou por vinte e sete anos. E sua libertação só ocorreu por pressões e sanções econômicas internacionais que estrangularam o país e obrigaram a minoria branca a revogar o regime do Apartheid. O que foi o Apartheid?
No final da década de noventa, o Brasil foi jogar na África do Sul, mas não foi Rugby. Foi Futebol mesmo. Amaral, volante brasileiro nos conta que ao chegar foi entrevistado pela TV brasileira, e perguntado o que ele achava do regime do Apartheid. Respondeu de pronto que a oportunidade tinha sido dada, e que se o tal do Apartaide fosse bom de bola, ele iria grudar no cara o jogo todo. Isso em rede nacional. Explicaram para o Amaral que Apartheid era o regime de segregação racial imposto pela minoria, a elite branca, aos não brancos, sobretudo negros. Isso se manteve durante décadas de violência. Amaral depois pregou uma peça em todos os jogadores que não sabiam o que era Apartheid. Com ares de sabido.
Em tempos de Copa do Mundo, algumas pessoas estão soltando memes tirando sarro e torcendo contra Neymar Jr, que apoiou Bolsonaro na eleição. Militantes ainda bloqueiam estradas. Muita gente afirma com ares professorais que a eleição foi fraudada e que um golpe de estado está a caminho. Não dá para deixar de comparar com o clima de ódio que reinava na África do Sul em 1995, quando se passa o filme, com o Brasil nessa Copa do Mundo. A minoria branca odiava Mandela, a quem chamava de Terrorista. Os negros, por sua vez, queriam a forra das décadas de sofrimento e exclusão. Queriam, inclusive, acabar com o time de Rugby dos Springboks, o que representava a dominação dos colonizadores. Os negros odiavam esse time. Mandela também odiava. Mas teve a visão de que, através daquele time de brancos, poderia começar a cicatrizar as feridas da alma lanhada da África do Sul. Ele não só impediu o ministério de acabar com o time como virou amigo pessoal do capitão do mesmo, interpretado por um bombado Matt Damon, François Pienaar. Ele sai da reunião com Mandela boquiaberto. Sua mulher pergunta, ansiosa: “E aí? Como foi?” Ele responde: “Acho que ele quer ganhar a Copa do Mundo!”. Parecia impossível. Como parecia impossível um homem que passou vinte e sete anos preso sair da cadeia pronto para perdoar seus perseguidores e criar um país de perdão.
Durante a reunião com o jogador, Mandela deu para ele um poema vitoriano, de William Henley, que o ajudava a levantar quando ele não conseguia mais levantar: “Eu agradeço aos deuses pelo meu espírito invencível/ Eu sou o Mestre do meu Destino / Eu sou o capitão da minha Alma”. Por isso quando Pienaar aponta a arquibancada com negros e brancos cantando por um só país, ele grita: “Esse é o seu país! Esse é nosso Destino!”
Eu torço pelo meu país, que é um só. Torço por Neymar e seus companheiros. E espero que a Copa ajude a lamber as nossas feridas.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”