Alguns dias depois da bofetada na noite do Oscar, Will Smith internou-se voluntariamente numa Clínica Psiquiátrica para Reabilitação. Um amigo me ligou para me dizer que minha avaliação estava correta. No dia seguinte à cerimônia do Oscar eu escrevi sobre sua atitude e sintomas contidos em seu discurso, para mim indicativos de que ele estava precisando de ajuda com uma certa urgência. Meu amigo e colega leu o texto e me falou que eu iria queimar a minha língua, que aquilo tinha sido uma armação para devolver o Oscar às manchetes. É um programa decadente, que premia uma indústria hoje fragmentada em vários canais de streaming. O escândalo serviria para chamar atenção sobre o evento. A análise que eu fiz viraria piada. Eu achei que não viraria piada, e não virou.
Vivemos numa Sociedade do Espetáculo, onde um mendigo que transa com uma mulher em surto psicótico pode virar uma celebridade e beijar influencers na balada. Não dá mais para traçar a linha entre o real e a encenação. Tudo parece roteirizado, até a morte. O importante é criar impacto e canalizar a atenção, até o próximo evento escandaloso. Somos uma aldeia global sedenta de cliques e likes.
Denzel Washington, um cara que tem a confluência rara de ser um artista espetacular e um homem íntegro e integrado às suas qualidades e defeitos, chamou Will Smith de canto depois da bofetada e falou, na citação do próprio Will: “Tome cuidado. Você está no momento de maior brilho. É nessa hora que o diabo vem atrás de você”. Nenhum terapeuta poderia ter falado melhor. Pela lei da compensação, quando estamos no ponto mais alto que se faz necessária a maior humildade. Não é fácil. O sucesso tem a característica inebriante de fazer seu portador se identificar com ele. O escritor Jorge Luís Borges escreveu: “Bem Aventurado aquele que aceita a vitória e a derrota com a mesma serenidade”. Mais uma vez eu digo: não é fácil. A tendência normal é ficar inflado nas vitórias e destruído nas derrotas.
Um terapeuta junguiano diria que o demônio que possuiu Will Smith é a Identificação com o Arquétipo. Vou traduzir o palavrão.
Arquétipos são matrizes fundamentais de nossa cultura e Psique. Figuras que aparecem em todas as mitologias: a Mãe, o Pai, o Herói, o Salvador, a Bruxa, o Perseguidor, a Mulher Fatal. Preste atenção a seus sonhos, que esses arquétipos estão sempre por lá. Os filmes, os contos de fada, os reality shows, as neuroses familiares, todas as metáforas que nos regem derivam dos Arquétipos. A moça em surto psicótico viu uma divindade no homem em situação de rua, possuída por essa inundação psíquica. Os Arquétipos estão dentro de nossa Psique e projetados nas fotos do Instagram. Eles são matrizes de formação de consciência, e viram monstros quando queremos encarná-los. Esse o sinal claro que Will Smith estava doente. Em seu discurso, ele falou que estava sobrecarregado pelas tarefas que Deus colocava para ele. Ele desejava ser um Rio para seu povo. Uma luz para o mundo. Proteger a sua família dos abusos que sofrem as pessoas relevantes. E por aí foi. Ele estava inflado por essa fantasia de Salvador. De ser a Luz para o Mundo.
Alguém poderia, e deveria perguntar: isso é errado? É errado querer inspirar pessoas, fazer filmes com mensagens construtivas, num mundo em que o caos parece sempre estar ganhando? Posso encher a boca para falar: isso não é errado, claro que não. Ainda vou escrever sobre as imensas qualidades do filme “King Richard” e da interpretação de Will Smith que lhe deu um merecido Oscar. Sem dúvida que a mensagem transmitida pelo filme é de Esperança e de Mentalidade de Crescimento. Pena que tudo isso foi manchado por uma bofetada num colega vinte quilos mais magro que ele. E por que? Porque ele se investiu da posição de Protetor de sua família. De Portador de Luz para seu povo. Essa identificação, muito provavelmente turbinada pelo seu estado, compatível com um colapso de algumas capacidades psíquicas, geraram a cena que vai ficar marcada, sobreposta ao que seria o ponto mais alto de sua jornada. Ao se proclamar o grande Protetor, acabou deixando todos os seus protegidos expostos ao massacre da mídia. Massacre muito pior que a piada de Chris Rock.
Nossa vida pode ser inspirada pelos melhores projetos, pelas melhores intenções. É muito bom que seja assim. Mas é mais protetor pensar que somos instrumentos de uma ideia maior que nós, não que somos a encarnação dessa ideia.
Pode parecer estranho, mas acolher o sucesso com cuidado e simplesmente aceitar que ele veio depois de um longo processo de busca e de aperfeiçoamento é dom muito mais maduro e sutil do que podemos imaginar. No filme, o personagem de Will Smith, Richard Williams, tem uma briga feia com suas filhas depois de uma vitória, pois ficaram contando vantagens no carro, voltando para casa. Ele falou para as meninas, depois de obrigá-las a assistir o vídeo da Cinderela: quando virar uma Princesa, não se esqueça de onde você veio.
Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”