A eleição de Daniel Ortega ocorrida nesse mês na Nicarágua é demonstração cabal que a experiência democrática demanda muito mais que o simples cumprimento de alguns ritos formais. É necessário que o corpo da democracia seja preenchido por um conteúdo específico que nem sempre existe em vários países do mundo. A lição deixada pelo pleito realizado no mencionado país da América Central deve ser absorvida em vários lugares do globo, inclusive no Brasil.
Escolhido para dirigir o país pela quarta vez consecutiva como presidente da República, Ortega tem como vice, curiosamente, sua esposa Rosario Murillo, reeleita para tal posto. Esse fato já realça um aspecto característico de muitos países latino-americanos: o patrimonialismo. A confusão entre os campos público e privado, ao que parece, é elemento presente na vida política nicaraguense, assim como viceja há muito tempo em terras brasileiras. Seja sob a forma de assunção de cargo público, seja pelo favorecimento para a realização de negócios no campo econômico, a prática patrimonialista corrói o conceito de república e, automaticamente, diminui a efetividade da participação popular no exercício do poder.
Outro aspecto que deve ser observado na Nicarágua foi o tratamento conferido à oposição durante o período eleitoral. Sete pré-candidatos que poderiam fazer frente ao presidente candidato à reeleição foram presos, algo incomum em qualquer país que se diga democrático. Eventualmente, imagina-se, um candidato que poderia ter feito algo ilegal a ponto de ser levado à cadeia após processo regular, mas o número elevado de prisão de opositores evidencia que o direito pode ter sido utilizado para impossibilitar a concorrência ao poder consoante regras verdadeiramente democráticas. A história, aliás, apresenta variados momentos em que o regramento jurídico, como instrumento que é, tem a aptidão de ser utilizado tanto para fins nobres quanto para objetivos deletérios.
Na democracia, como demonstrado, a mera existência de eleições não é suficiente para caracterizá-la. Liberdade de expressão, necessária inclusive para o exercício legítimo da oposição, não é algo negociável em um ambiente que se pretenda adequado para a verdadeira manifestação de vontade popular. Sempre importante ressaltar a fundamentalidade do direito de exprimir-se de forma livre, especialmente em tempos nos quais ronda a política brasileira a proposta de regulação das mídias sociais. Sob a roupagem de pretensa democratização dos meios de comunicação, pode estar repousando o velho e conhecido anseio autoritário de camadas da sociedade (e da política à direita e à esquerda, consequentemente) de tutelar o que deve ser dito. A longo prazo, o controle sobre o que deve ser falado e escrito tem o condão de degenerar aquilo que é pensado.
A experiência nicaraguense é, enfim, exemplo a não ser seguido ou aplaudido por qualquer país que tenha entre seus objetivos aprofundar a existência democrática. Quando a democracia torna-se apenas um simulacro, cabe observar o processo de deterioração das estruturas que estão ocultas e que servem de premissas à experiência de governo autenticamente popular. O ódio à divergência, a perseguição a quem pensa diferente (muito comum em época de ‘cancelamentos’ virtuais) e a tentativa de dominar os meios de comunicação não são elementos estranhos à vivência brasileira atual. Cabe à sociedade, portanto, ficar atenta para evitar que o monstro do autoritarismo, sempre à espreita, seduza os incautos com um malicioso sorriso oculto sob o véu da democracia.
Elton Duarte Batalha é professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.