por Vanessa Martins de Souza
Neste Carnaval, a cartilha do politicamente correto avançou um pouco mais. Passando de todos os limites. Agora, deram para orientar sobre limites ao uso de fantasias carnavalescas que se revelam inimagináveis aos dotados de algum bom senso. É o que pede uma nota publicada no Diário Oficial do município de Belo Horizonte, divulgada na quinta-feira (13).Neste ano, homem vestido de mulher também entra na lista de fantasias que devem ser evitadas pelos foliões. Segundo a cartilha de orientações divulgada pelo Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), homem vestido de mulher seria preconceituoso e machista, caricaturando as mulheres de forma ridícula. Também alegaram que seria desrespeitoso com as mulheres trans, além de reforçar os estereótipos de gênero.
A criadora da ONG Transvest, Duda Salabert, acrescentou que “alguns homens vestidos de mulher apresentam o feminino de forma muito caricatural, de forma ridícula. Acaba mantendo a lógica de inferiorizar o feminino. No caso de nós, pessoas transexuais, gera um constrangimento. Eu sou uma mulher travesti, transexual, e no Carnaval quando vou à padaria as pessoas perguntam se estou fantasiada, eu estou apenas indo comprar pão. Assim é a minha identidade, não é fantasia”.
O lúdico e a transgressão
Ora, e desde quando um homem vestido de mulher no Carnaval não seria para parecer ridículo, mesmo? A intenção é justamente essa. Carnaval é a festa da inversão de valores, em que a irreverência pode e deve tomar conta, em que se faz piada de tudo, transgredindo a moral, a ordem e os valores estabelecidos. Tem em sua base a transgressão, subvertendo a ordem do estabelecido. Em suma, é uma festividade em que impera a brincadeira, a caricatura, os estereótipos, mesmo. Muitas vezes, certas fantasias e representações utilizam-se do humor, da gozação pura e simples. Esse aspecto lúdico do Carnaval infelizmente tem se perdido a partir de uma série de regras ditadas pela cartilha do politicamente correto que acredita que, em quatro dias de folia, fará alguma diferença combater preconceitos e discriminações.
Politicamente correto x irreverência dos blocos
A cartilha de orientações do Compir, por exemplo, traz uma série de orientações para a adoção de ações não-discriminatórias durante a folia, que passam pelas fantasias, marchinhas e, claro, atitudes. Mas, o politicamente correto bate de frente com a irreverência dos blocos. E o debate tem dividido opiniões. Já se debate se fantasia de índio e de cigano pode. Se de Nega Maluca e de enfermeira sensual pode. Se até de Iemanjá, pode. Tudo isso seria desrespeitoso, ofensivo, aos índios, ciganos, negros, mulheres e às religiões da Umbanda e Candomblé, respectivamente. Aonde vamos parar? Daqui a pouco, restará que tipo de fantasia, somente? Ocorre-me a de políticos corruptos… Mas, pensando bem, essa alternativa estaria fora de cogitação, também. O caos social estaria instalado. Pois, brasileiros costumam dividir-se entre apoiadores de corruptos, seus “bandidos de estimação”, conforme a ideologia. Seriam quatro dias de muita tragédia e violência…
Polêmica com atriz Alessandra Negrini
Recentemente a conversa sobre fantasias ofensivas tomou repercussão nacional com o caso da atriz Alessandra Negrini, que se vestiu de índia para desfilar como Musa do Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta pelo oitavo ano consecutivo. Negrini apareceu na concentração do bloco, no cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, acompanhada da líder indígena Sônia Guajajara. Contudo, a posição de Sônia não é a mesma que a de outros ativistas, que são contra atitudes como a da atriz. Ou seja, o que é ofensivo ou não, revela-se muito subjetivo em certos casos. A atriz quis apoiar a causa dos direitos indígenas. Mas, houve gente que interpretou mal… A fantasia foi acusada de “racista” e de “apropriação cultural”. Desde 2017, quando a artista e ativista indígena Katú Mirim lançou a hashtag #IndioNãoéFantasia, o assunto entrou no debate. Da mesma forma que fantasias de “Nega Maluca” e de escravos negros são consideradas pejorativas e racistas. Em relação a fantasias relativas a afrodescendentes, realmente, costumam revelar-se pejorativas, em minha opinião, já, no caso da fantasia da atriz, não houve nenhuma conotação ofensiva. Ao contrário, a intenção foi apoiar a causa indígena. A fantasia de Negrini não trouxe nenhuma representação ofensiva, nenhum detalhe ou adereço que pudesse inferiorizar o índio.
Engessamento do Carnaval
Excesso de zelos, rigores e preocupações em não ofender minorias, grupos étnicos, mulheres, gays e outros, terminam por incorrer em fanatismo e engessamento do Carnaval. Tornando tudo muito chato. Evidentemente, há situações que precisam mudar, a exemplo das marchinhas carnavalescas ofensivas sobre negros, gays, mulheres, que reforçam preconceitos e discriminação. Porém, há outras situações em que há exageros e obsessões, e muita vontade de “lacrar” no ativismo, a exemplo dessa polêmica sobre homens vestidos de mulher, e outras fantasias tradicionais, como as de cigano, Iemanjá, índio. Carnaval atua muito com imagens e simbologia estereotipadas e caricaturais, mesmo, pois se trata de uma festividade muito popular, em que não há espaço para um aprofundamento mais sofisticado e realista. Enfim, os velhos tempos em que era “proibido proibir” deixam saudades em muitos…