Mas os cidadãos desconfiam quando o conceito é usado de má fé ou com o propósito de mascarar posicionamentos. Veja-se o que o governo tem dito sobre a vacina contra o Covid-19, cujo processo de finalização mobiliza equipes científicas e laboratórios em muitos países, e a previsível adesão em massa dos brasileiros.
Porta-vozes salientam que ela não será obrigatória porque no Brasil não há um tirano e a liberdade é valor central de nossa democracia. A observação seria pertinente caso não fosse embalada por um viés anticientífico, desses, por exemplo, usados por adeptos de certas religiões, que não permitem crianças com leucemia aguda ou mesmo pessoas idosas, com pneumonia grave, tomarem transfusão de sangue. Orientam seus filiados a não adotar procedimentos da ciência.
Por que a publicidade exagerada que o governo está dando a esse fato, quando se sabe que mais de 90% da população brasileira garantem que tomarão a vacina? Lembremos que, mesmo antes da pandemia, já tomava corpo no país um movimento antivacina, que tem propiciado a volta de epidemias de doenças já erradicadas, como febre amarela e sarampo, fenômeno que também ocorre nos Estados Unidos. Propaga-se um falso temor de que vacina pode provocar a doença em vez de curar. Por aqui, viceja nas hostes governamentais uma corrente anticiência, de índole fortemente conservadora que, como num cabo de guerra, tenta puxar o território ao passado.
É exatamente na direção oposta aos avanços da medicina e da biotecnologia que grupos incrustrados na malha governamental constroem sua narrativa, como se observa na categórica afirmação de que a cura da pandemia é coisa simples, bastando a automedicação de cloroquina. O fato é que o Brasil vive o auge de uma guerra de narrativas. Do campo da ciência, os jogos contrários resvalam para os comportamentos, para a economia e para a política.
Na arena das decisões que competem aos governantes de estados e municípios, estão narrativas conflitantes, entre elas, a que prega a retomada urgente das atividades negociais e a que teme o repique da doença por conta das aglomerações. (A Espanha registra, esta semana, a retomada do fluxo de contaminação pelo Covid-19). Um grupo defende a reabertura das escolas e outro sugere cautela na volta das aulas. Autoridades da Educação opinam sobre a matéria e o que se ouve mais parece um falatório na Torre de Babel. Por que não se chega a um consenso? Onde se escondeu o bom senso?
Na área da economia, as narrativas conflituosas nascem no próprio seio do governo. Uma defende o programa Renda Brasil, a consolidação das ações de proteção social, mas o desacordo é oceânico entre a equipe econômica e outros times ministeriais, que combatem o teto de gastos, meta-síntese do ministro Paulo Guedes. O orçamento irrealista, segundo economistas, ameaça romper o teto, mas o governo se empenha para usar R$ 1,2 bilhão fora dele.
O presidente, embalado no apoio popular que passa a ter no Nordeste, depois do pior desempenho em 2018, queria continuar com um auxílio emergencial de R$ 600 até o fim de ano. Chegou-se ao meio termo de R$ 300. Mas se a economia não pegar no tranco em 2021, como as margens protegidas reagirão a eventual diminuição de seus recursos?
A reforma administrativa, que o governo encaminha ao Parlamento, abrangerá apenas os futuros servidores sob a cama da estabilidade ou pegará todo mundo? A reforma propõe corte de vantagens, como concessão de licença-prêmio e gratificação por tempo de serviço, facilita demissões durante o período de experiência, reduz o salário inicial, entre outros aspectos.
Grupos se engalfinham e a área política, com um olho nas eleições deste ano e na de 2022, tende a aprovar uma reforma mais suave, que menos danos traga ao servidor público. A base governista começa a ser composta na Câmara com a adesão do PP e outras agremiações, mas persiste a dúvida sobre a lealdade parlamentar.
No campo do ambientalismo, as narrativas entram em luta aberta. De um lado, o ministro Ricardo Salles e apoiadores que acendem o fogo na floresta amazônica, na outra ponta, a comunidade salvacionista, sob o eco de governos estrangeiros, luta pela preservação da região, enquanto no meio, o vice-presidente general Hamilton Mourão tenta equilibrar o jogo.
A guerra no território da expressão deixa atônitos seus próprios protagonistas. Por falta de uma orientação segura sobre os rumos a seguir, batem boca pela imprensa ou em lives, a nova mania nacional. Resta dizer que o próprio mandatário-mor tem sido responsável por parcela dos litígios.